· Cidade do Vaticano ·

Rumo ao Jubileu
2. O Ano santo de 1300

Faltava a centelha para fazer deflagrar o incêndio

 Faltava a centelha para fazer deflagrar o incêndio  POR-018
02 maio 2024

Bonifácio VIII e o primeiro Jubileu da história


Para o homem medieval, «jubileu» equivalia a «indulgência» e antes que Bonifácio viii — no ano de 1300 — anunciasse ao mundo o grande perdão, a cristandade medieval nunca tinha celebrado um jubileu como o entendemos hoje. As afirmações presentes na Crónica do cisterciense Alberico das Três Fontes, segundo as quais «se declara que este ano [1208] seja celebrado como o quinquagésimo, ou jubileu, e de remissão», referem-se, com toda a probabilidade, à indulgência concedida naquela época por Inocêncio iii a quantos iam em procissão atrás da imagem de Verónica. Se se tratasse de um verdadeiro jubileu, os vestígios deixados nas crónicas e nos documentos teriam sido muito diferentes, nem se poderia explicar por que motivo seria convocado em 1208, ano que não assinalava qualquer celebração especial.

Portanto, foi Bonifácio viii que deu origem ao Jubileu cristão. No entanto, a ideia não nasceu na mente do Pontífice, nem na dos seus colaboradores mais próximos. Graças a uma fonte de importância extraordinária, o De centesimo seu Jubileo anno liber (Livro sobre o centésimo ano, ou Jubileu), de Jacopo Stefaneschi, cardeal diácono de São Jorge “al Velabro” (um magnífico exemplar está conservado no cód. g . 3, no Arquivo de São Pedro, na Biblioteca Apostólica do Vaticano), podemos efetivamente conhecer os antecedentes da decisão, que no final levaram o Papa Caetani a conceder ao mundo a «pleníssima» remissão dos pecados.

«Propagou-se um boato, narra Stefaneschi, a respeito do ano santo, cujo início iminente era então esperado com o número 1300. (...) Difundiu-se uma promessa: quem fosse a Roma, à basílica de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, obteria a pleníssima remissão de todos os pecados». Assim, surgiu um boato que correu no meio do povo: o encerramento do centésimo ano traria consigo a promessa de uma indulgência «pleníssima». Stefaneschi ajuda-nos a conhecer os efeitos desta convicção, ainda que até para ele não seja clara a sua causa, ou pelo menos a sua motivação imediata, dado que a próxima ou remota residia na fervorosa expetativa escatológica que permeou a cristandade durante toda a Idade média, alcançando os seus picos mais altos no século xiii .

Já havia a expetativa viva, quando o fim do século se aproximava. Só faltava a centelha para fazer deflagrar o incêndio. E a maravilha é esta: quase todo o dia 1 de janeiro, narra o De centesimo seu Jubileo anno liber, o segredo da nova remissão permaneceu secreto; mas, ao anoitecer, ao pôr do sol, quase no silêncio profundo da meia-noite, os Romanos conheceram-no: e eis que acorreram em multidão à sagrada basílica de São Pedro. Apinhavam-se ao pé ao altar, obstruindo-se uns aos outros, de modo que dificilmente se podiam aproximar, como se pensassem que naquele dia, que em breve terminaria, com ele terminaria a concessão da graça, pelo menos da maior. E não podíamos afirmar sem incerteza alguma se tinham vindo movidos por um sermão matutino, feito na basílica por ocasião do centésimo ano, ou jubileu, ou por sua própria vontade, ou ainda — o que me parece mais credível — atraídos por um sinal do céu, que tencionava recordar celebrações passadas do ano jubilar e avisar as futuras».

A hipótese, feita por Stefaneschi, de que tenha sido um pregador a falar da indulgência é certamente plausível, mas não sei se devemos pensar num «sermão matutino feito na basílica», ou então num pregador itinerante que percorria a Urbe, pois não explicaria como, tendo lançado o apelo de manhã, a voz só começasse a espalhar-se ao pôr do sol. E, como se sabe, certos boatos têm o poder de se difundir entre o povo tão rapidamente como as centelhas se espalham num campo de palha: «Com estes inícios, a fé e a frequência dos cidadãos e estrangeiros começaram a aumentar de um dia para o outro». Assim, a voz adquiriu consistência não de cima, mas de baixo. E, uma vez iniciada, nada e ninguém a podia impedir.

No entanto, Bonifácio viii não queria desistir. Por outro lado, não se tinha já oposto decididamente à decisão de Celestino v que, poucos anos antes, alargara desproporcionalmente os cordões da bolsa, concedendo a indulgência plenária a quantos, num determinado dia, arrependidos e confessados, fossem a Áquila, à basílica de Santa Maria de Collemaggio? Por isso, diz ainda a nossa fonte, «o bom padre decretou que se procurassem vestígios nos livros antigos. Mas nada se encontrou do que se procurava, talvez por negligência dos sacerdotes, se é que fosse lícito manchar a sua fama; ou porque aqueles livros se tinham perdido devido a cismas e guerras cujas tempestades afligiram Roma muitas vezes — e isto é motivo de lástima, não de admiração — ou porque era fruto mais da fantasia do que da verdade».

Por conseguinte, investigações atentas, mas sem êxito; e sem êxito porque nada tinha acontecido, o que além disso colocava o Pontífice em campo aberto, uma vez que não tinha precedentes em que assentar, exceto a decisão do seu imediato predecessor, da qual ele não podia — e certamente não queria — servir-se. Entretanto, o boato enraizava-se cada vez mais, ramificando-se em diferentes correntes: «Alguns afirmavam que no primeiro dia do ano secular se apagaria a mancha de todas as culpas, enquanto outros pensavam que se ganharia a indulgência de cem anos. E assim, durante cerca de dois meses, mantinham as duas esperanças e a dúvida, e muitos acorriam em maior número do que habitualmente no dia em que a venerável efígie, vulgarmente conhecida como Sudário ou Verónica, estava exposta ao mundo inteiro.

Assim, no domingo seguinte à oitava da Epifania, que naquele ano se celebrava no dia 17 de janeiro, a multidão foi particularmente numerosa por causa da prevista ostensão da Verónica. Acabou também por aparecer uma testemunha, que teria cento e sete anos, e que, introduzida à presença do Pontífice, declarou ter recordações do século anterior, durante o qual o pai tinha ido a Roma para receber o perdão, recomendando ao filho, «caso chegasse ao ano secular seguinte, o que ele não julgava possível», que fosse ele próprio a Roma. «Interrogamo-lo, garante Stefaneschi, e ele deu-nos as mesmas notícias».

Então, Bonifácio viii pediu «o parecer do Sagrado Colégio dos padres sobre a nova questão do centésimo ano, ainda não completamente aprofundada». O Papa não estava de modo algum desinformado, e bem sabia que se devia aventurar num terreno ainda desconhecido. Além disso, não se podia chegar a um sim ou a um não, sem uma consulta prévia: com efeito, «à questão foi dada uma resposta favorável, pelos méritos dos apóstolos». Isto levou à decisão da convocação do jubileu, divulgada com a carta Antiquorum habet fida relatio, de 22 de fevereiro de 1300. A data escolhida, festa da Cátedra de São Pedro, não foi certamente casual, uma vez que foi «na plenitude da autoridade apostólica» (plenitudo potestatis) que o Pontífice — segundo a carta — concedeu «não só o perdão pleno e abundante, aliás pleníssimo, de todos os pecados».

Portanto, impelido pela pressão pública e depois de não poucas hesitações iniciais, Bonifácio viii anunciou o acontecimento extraordinário da remissão total, da qual se tornou generoso doador. Por isso, aquele dia foi celebrado com particular pompa e solenidade: «Velado o ambão com cortinas de seda bordadas a ouro, onde subiram o prelado romano e os padres, e depois de proferir um discurso à multidão, foi finalmente recitada a carta». Acolhendo o pedido do povo, ele, na sua plenitudo potestatis, apresentou-se assim ao mundo como magnanimus pontifex, único detentor das chaves que, por si só, podiam abrir o cofre que encerrava o tesouro da Igreja.

Assim, a sua decisão visava manifestar a plenitude do seu poder, a força carismática inerente à Igreja hierárquica: uma mensagem imediatamente compreendida. «Contra as correntes heréticas, escrevia Arsenio Frugoni, que (...) tinham negado a necessidade de mediação da Igreja para a salvação, ele lançava a sua promessa de perdão à qual responderia, de forma esmagadora, o anseio de salvação dos fiéis. As reservas, imediatamente levantadas de modo animoso pelos frades Mendicantes, sobre a plenitude real da indulgência, mais do que pelos esclarecimentos dos teólogos, seriam aniquiladas pela torrente de peregrinos que reconheciam, por esse dom maravilhoso, no Pontífice o Vigário de Deus».

Mas foi um triunfo de breve duração. Dois anos mais tarde, reafirmaria solenemente o seu ideal hierocrático na carta Unam sanctam, declarando que na «Igreja e no seu poder há duas espadas, isto é, uma espiritual e outra temporal»: «Uma deve ser empunhada para a Igreja, a outra pela Igreja; a primeira pelo clero, a segunda pela mão dos reis ou cavaleiros, mas segundo o comando e a condescendência do clero, porque é necessário que uma espada dependa da outra e que a autoridade temporal esteja sujeita à autoridade espiritual». No entanto, à dissolução do império seguiu-se a afirmação das potências nacionais e uma noção laica da política e do Estado já se perfilava no horizonte.

Deste modo, o Jubileu de 1300 constituiu um momento culminante do pontificado de Bonifácio e, certamente, a grande enchente de peregrinos permaneceu viva no espírito das testemunhas, que se dirigiam a Roma como que para um destino há muito desejado e que, em contacto com a Urbe, com as suas igrejas, monumentos e soberbas ruínas, viam o traço de uma memória secular e grandiosa da qual se sentiam parte, ainda que por um instante. Portanto, como escrevia Arsenio Frugoni, foi «a última provação do grande papado medieval».

Felice Accrocca