Indulgências
e ironia da história

Interior of Santi Giovanni e Paolo (Venice) - Honorius III by Leandro Bassano
02 maio 2024

Antes que Bonifácio viii proclamasse o Jubileu, na segunda metade do século xiii , tinham surgido duas outras indulgências plenárias — para além da tradicional concedida a quem partia para a cruzada, experiência que, de resto, já estava próxima do fim — ambas com uma periodicidade cíclica anual, ambas ligadas a um determinado tempo. Trata-se da chamada indulgência da Porciúncula, válida das primeiras às segundas vésperas de 2 de agosto, e do Perdão de Áquila, válido das primeiras às segundas vésperas de 29 de agosto, festa da decapitação de São João Batista.

No entanto, a situação documental é muito diferente, porque se temos a carta original de Celestino v para a indulgência do Perdão de Áquila, que ainda se conserva no Município de Áquila, não há nenhum documento nem atestado da chamada indulgência da Porciúncula no riquíssimo corpus das fontes hagiográficas sobre São Francisco de Assis. A primeira confirmação significativa a este respeito é, com efeito, o diploma do bispo Teobaldo de Assis (de 1310), que recolhe e sintetiza os testemunhos anteriores.

Se acreditarmos no testemunho de Francisco Venimbeni de Fabriano, a notícia de que a indulgência teria sido concedida oralmente a Francisco por Honório iii começou a difundir-se na década de 60 do século xiii , sobretudo graças a frei Leão. Segundo alguns fragmentos da sua Crónica perdida, na segunda metade dessa década, Francisco Venimbeni ter-se-ia com efeito encontrado com frei Leão em Assis, que lhe teria revelado que ouvira da boca do próprio Francisco a história da concessão da indulgência pelo Papa.

Isto é particularmente interessante, sobretudo se tivermos em consideração que, na década seguinte ao testemunho de Leão recolhido por Venimbeni, a Ordem dos frades menores começou a produzir testemunhos escritos para justificar um vazio documental que, de outra forma, seria impossível preencher. A notícia de uma indulgência concedida por Honório iii começou, portanto, a difundir-se com o apoio do círculo dos companheiros de Francisco sobreviventes, embora sem o apoio de quaisquer documentos; além disso, deve-se frisar que a própria realidade do dado que se queria afirmar dificilmente se conciliava com o que se deduzia dos escritos do Santo. O próprio Boaventura de Bagnoregio mostrava-se bastante cético perante tais notícias: com efeito, é possível compreender os seus receios, talvez aumentados porque os propagadores da indulgência eram, antes de tudo, frades nostálgicos do estilo de vida da primeira fraternitas e bastante críticos a respeito da evolução a que a família franciscana fora sujeita.

A situação era diferente em Áquila, onde se conserva a carta de Celestino v Inter sanctorum solemnia, na qual o idoso pontífice concedia a indulgência plenária a todos aqueles que, arrependidos e confessados, se dirigissem à igreja de Santa Maria de Collemaggio, na festa do martírio de São João Batista. Uma decisão a que se opôs tenazmente Bonifácio viii que, no entanto, poucos anos depois, foi por sua vez chamado a fazer uma concessão semelhante e a proclamar — em 1300 — o primeiro jubileu da era cristã.

Com efeito, foi a indulgência da Porciúncula, que passou à história como o “Perdão de Assis”, que se impôs, devido tanto ao apoio da Igreja como à grande difusão das várias famílias franciscanas, que se referiram a essa indulgência e propagaram a sua prática entre os fiéis, enquanto só nas últimas décadas o Perdão de Áquila voltou à ribalta. Poder-se-ia dizer que se trata de ironia da história; ou, talvez, também seja verdade que Deus se serve de tudo para chamar os homens à conversão. (felice accrocca)