· Cidade do Vaticano ·

O ministério do Sucessor de Pedro já não é visto pelas outras Igrejas apenas como um problema, mas antes como uma oportunidade para uma reflexão comum sobre a natureza da Igreja e a sua missão no mundo

O cardeal Koch: «O primado
do Papa é serviço e é exercido de modo sinodal»

 O cardeal Koch: «O primado do Papa é serviço  e é exercido de modo sinodal»  POR-024
13 junho 2024

«Oprimado deve ser exercido de forma sinodal, e a sinodalidade exige o primado»: assim o cardeal Kurt Koch, prefeito do Dicastério para a promoção da unidade dos cristãos, resumiu um dos pontos-chave do documento ecuménico intitulado “O Bispo de Roma”, divulgado a 13 de junho. Um texto que resume os desenvolvimentos do diálogo ecuménico sobre o tema do primado e da sinodalidade.

Eminência, pode explicar-nos em que consiste este documento, como surgiu e qual é a sua finalidade?

Este documento, intitulado O Bispo de Roma, é um texto de estudo que oferece uma síntese dos recentes desenvolvimentos ecuménicos sobre o tema do primado e da sinodalidade. A sua génese remonta ao convite dirigido a todos os cristãos por São João Paulo ii na Ut unum sint para encontrar, «evidentemente juntos», as formas mediante as quais o ministério do Bispo de Roma «pode realizar um serviço de amor reconhecido por uns e por outros». Este convite foi repetidamente reiterado pelo Papa Bento xvi e pelo Papa Francisco. O documento resume cerca de trinta respostas a este convite e aproximadamente cinquenta textos de diálogos ecuménicos sobre o tema. Em 2020, o Dicastério para a promoção da unidade dos cristãos viu no 25º aniversário da encíclica Ut unum sint uma oportunidade para fazer um balanço do debate. A convocação de um Sínodo sobre a sinodalidade confirmou a pertinência deste projeto, como contribuição para a dimensão ecuménica do processo sinodal.

Que metodologia foi utilizada para a elaboração deste documento?

O documento é o resultado de um verdadeiro trabalho ecuménico e sinodal. Na sua realização, empenhou não só os oficiais, mas também os membros e consultores do Dicastério que o debateram em duas assembleias plenárias. Foram consultados numerosos peritos e estudiosos católicos de várias tradições cristãs, do Oriente e do Ocidente, em colaboração com o Instituto de estudos ecuménicos do Angelicum. Depois, o texto foi enviado a vários Dicastérios da Cúria romana e à Secretaria geral do Sínodo. No total, foram considerados mais de cinquenta pareceres e contribuições. O nosso documento tem também em conta as últimas intervenções no contexto do processo sinodal.

Na sua encíclica “Ut Unum Sint” (1995), João Paulo ii disse que estava disposto a debater as formas de exercício do primado do bispo de Roma. Que caminho foi percorrido nestas três décadas?

A questão do primado foi intensamente debatida em quase todos os contextos ecuménicos nas últimas décadas. O nosso documento descreve os progressos e realça que os diálogos teológicos e as respostas à encíclica testemunham um novo e positivo espírito ecuménico no debate. Este novo clima é indicativo das boas relações estabelecidas entre as comunhões cristãs, daquela “fraternidade reencontrada” da qual Ut unum sint fala. Pode-se dizer que os diálogos ecuménicos revelaram-se como o contexto adequado para debater esta questão sensível. Numa época em que os resultados do compromisso ecuménico são muitas vezes considerados escassos ou insignificantes, os resultados dos diálogos teológicos demonstram o valor da sua metodologia, ou seja, da reflexão feita «evidentemente juntos».

Lendo o documento, impressiona sobretudo o crescente consenso encontrado nos vários diálogos ecuménicos sobre a necessidade do primado. Quer isto dizer que, para as outras Igrejas cristãs, o papel do Bispo de Roma já não é visto apenas como obstáculo à unidade?

Em 1967, Paulo vi afirmou que «o Papa [...] é sem dúvida o maior obstáculo no caminho do ecumenismo». No entanto, cinquenta anos mais tarde, a leitura dos documentos de diálogo e das respostas a Ut unum sint atesta que a questão do primado para toda a Igreja, e em particular do ministério do Bispo de Roma, já não é vista apenas como um problema, mas sobretudo como oportunidade para uma reflexão comum sobre a natureza da Igreja e a sua missão no mundo. Além disso, no nosso mundo globalizado, sem dúvida há um sentimento crescente da necessidade de um ministério de unidade a nível universal. A questão que se coloca é chegar a um acordo sobre o modo de exercer este ministério, definido por João Paulo ii como «serviço de amor».

Ao longo dos dois milénios de história da Igreja, como mudou a maneira de exercer o primado? E que evolução poderia haver para tornar este exercício aceitável também para outras Igrejas que hoje não estão em plena comunhão com Roma?

Sem dúvida, o modo de exercer o ministério petrino evoluiu ao longo do tempo, em função das circunstâncias históricas e dos novos desafios. No entanto, para muitos diálogos teológicos, os princípios e modelos de comunhão honrados no primeiro milénio permanecem paradigmáticos para o futuro restabelecimento da plena comunhão. Alguns critérios do primeiro milénio foram identificados como pontos de referência e fontes de inspiração para o exercício de um ministério da unidade universalmente reconhecido. Embora o primeiro milénio seja decisivo, muitos diálogos reconhecem que ele não deveria ser idealizado nem simplesmente recriado, pois os desenvolvimentos do segundo milénio não podem ser ignorados, e também porque um primado a nível universal deve responder aos desafios contemporâneos. Contudo, em última análise, o exercício renovado do primado deve ser modelado pelo serviço, pela diaconia. Autoridade e serviço estão intimamente relacionados.

É possível imaginar para o futuro uma forma partilhada de exercício do primado petrino sobre toda a cristandade, separada da jurisdição do Papa sobre a Igreja latina?

Na verdade, alguns diálogos ecuménicos sugerem uma distinção mais clara entre as diferentes responsabilidades do Bispo de Roma, em particular entre o que se poderia chamar o ministério patriarcal do Papa no seio da Igreja ocidental ou Latina, e o seu serviço primacial de unidade na comunhão de todas as Igrejas, tanto do Ocidente como do Oriente. Além disso, realçam a necessidade de distinguir o papel patriarcal e primacial do Bispo de Roma da sua função de chefe de Estado. A ênfase no exercício do ministério do Papa na sua Igreja particular, a diocese de Roma, que Francisco frisou particularmente, contribui para destacar o seu ministério episcopal que partilha com os seus irmãos bispos.

Este documento é publicado num momento em que a Igreja católica percorre um caminho sinodal centrado precisamente no tema da sinodalidade. Que relação existe entre sinodalidade e primado?

A maior parte das respostas e dos documentos de diálogo concordam claramente com a interdependência recíproca entre primado e sinodalidade a todos os níveis da Igreja: local, regional e até universal. Por conseguinte, o primado deve ser exercido de modo sinodal, e a sinodalidade requer o primado. Sobre todos estes aspetos, o nosso Dicastério organizou também conferências intituladas Listening to the East e Listening to the West, pondo-nos à escuta das várias tradições cristãs em relação à sinodalidade e ao primado, como contribuição para o processo sinodal.

Um passo decisivo no que diz respeito ao primado foi a dogmatização da infalibilidade do Bispo de Roma quando fala ex cathedra e do seu poder jurisdicional sobre a Igreja. Pode dizer-nos se e como é possível uma nova leitura e compreensão do Concílio Vaticano i à luz do Vaticano ii e dos passos dados no caminho ecuménico?

Certamente, alguns diálogos procuraram interpretar o Concílio Vaticano i à luz do seu contexto histórico, do seu objetivo e da sua aceitação. Uma vez que as suas definições dogmáticas foram profundamente condicionadas pelas circunstâncias históricas, sugerem que a Igreja católica procure novas expressões e vocábulos fiéis à intenção original, integrando-os numa eclesiologia de comunhão e adaptando-os ao atual contexto cultural e ecuménico. Portanto, fala-se de “reaceitação”, ou até de “reformulação” dos ensinamentos do Vaticano i .

Quais serão os próximos passos para dar continuidade à reflexão comum das Igrejas sobre o primado?

Este estudo conclui-se com uma breve proposta da Assembleia plenária do Dicastério, intitulada “Rumo a um exercício do Primado no século xxi ”, identificando as sugestões mais significativas propostas pelas várias respostas e pelos diálogos para um renovado exercício do ministério da unidade do Bispo de Roma. O nosso Dicastério gostaria de partilhar esta proposta, bem como o documento de estudo, com as várias comunhões cristãs, pedindo-lhes que se pronunciem sobre este assunto. Deste modo, esperamos continuar o debate «evidentemente juntos», para um exercício do ministério da unidade do Bispo de Roma «reconhecido por uns e po outros».

Andrea Tornielli