Creio que uma nova síntese entre o Evangelho e as culturas só pode ser realizada, hoje, por um cristianismo autenticamente secular. Este adjetivo, secular — que usamos muito menos do que o seu referente negativo “secularizado” — tem uma etimologia bastante complexa. A mais comummente partilhada liga-o ao léxico da sementeira (da raiz sa-): secular é a semente lançada, é o ciclo vital; não é por acaso que, em latim, saeculum indicava uma geração, cerca de trinta anos, ou seja, o ciclo vital do ser humano. Curiosamente, a palavra passou a significar duas coisas: um período de tempo (o século composto por cem anos) e aquilo que se opõe ao espiritual. Em síntese, secular indica algo que passa, que não pertence à ordem do eterno, que está sujeito a um ciclo vital de nascimento, crescimento e morte, sujeito à história e às suas mudanças.
Parece-me que o cristianismo europeu deste tempo, o tempo do seu aparente ocaso, do aparente ocaso da própria Europa, pode propor uma nova síntese entre o Evangelho e as culturas precisamente a partir desta necessidade, abraçando a sua forma secular, mutável, exposta ao fim e à finitude. Não à sua derrota, não necessariamente (é exatamente este o ponto), mas, sem dúvida, à sua finitude, ao seu possível ocaso. Dizer que o cristianismo se expõe à possibilidade do seu ocaso é considerar na ordem do possível que, dentro de um tempo mais ou menos longo, o cristianismo, tal como o conhecemos, está realmente destinado a tornar-se um momento da história, que acabará por ser estudado da mesma forma que hoje se estudam os deuses do Olimpo ou a epopeia de Gilgamesh ou a Odisseia de Homero. É possível que passemos a visitar as catedrais góticas tal como entramos no Pártenon de Atenas ou nas pirâmides do Egito. Não quero dizer que isto vai acontecer, nem desejo que aconteça, nem quero lançar todos na frustração ou na ansiedade — já temos o suficiente disto com o fim do Ocidente ou o fim do mundo — mas quero procurar explorar mais esta hipótese.
Afinal, a finitude é o que acompanha o ser humano na idade adulta, como quando, aos cinquenta ou sessenta anos, começamos a perceber a possibilidade de um fim.
Se procurássemos aceitar esta eventualidade, analisando-a mais de perto, notaríamos que se abrem energias relevantes. Por exemplo, há muitos filósofos laicos, em particular europeus, que falam do cristianismo desta forma há já algum tempo. Massimo Cacciari, Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Bruno Latour, mas também, em certa medida, Massimo Recalcati e Salvatore Natoli — para citar apenas alguns — propuseram uma leitura secular do cristianismo. É surpreendente que estes pensadores, precisamente por se declararem não-crentes, descobriram no cristianismo laico fontes de uma profundidade singular, tornaram acessível uma riqueza que nós próprios não conhecíamos e, sobretudo, reconheceram uma capacidade de síntese cultural e humana não só no Evangelho de Jesus, mas na própria parábola do cristianismo, nas suas instituições e teologias. Isto, a geração anterior (que facilmente afirmava “Cristo sim, Igreja não”), não foi capaz de o fazer. Um olhar sobre o cristianismo como realidade secular, talvez como realidade finita, escancara verdades que de outra forma seriam inacessíveis na sua história.
No entanto, a força destas sínteses realizadas por filósofos abertamente laicos confronta-se com um limite inevitável: o da celebração dos defuntos. Um elogio fúnebre, afinal, não se nega a ninguém. Em suma — para usar uma expressão com que um grande historiador da arte, Didi-Huberman, descreveu o que o Renascimento representou para a cultura clássica — quando se faz o elogio de um querido defunto, liberta-se o seu fantasma. E os fantasmas, como todos sabemos, são perigosos. Basta pensar na história de Hamlet, o pobre príncipe da Dinamarca que já não sabe escolher nada, porque sobre ele incumbe o fantasma do pai. Clive Staple Lewis escreve, a tal propósito, que «a definição de Hamlet não é “um homem que deve vingar o seu pai”, mas “um homem a quem um fantasma confiou uma tarefa”».
Contudo, imaginemos por um momento que esta profecia, este olhar secular, provenha não daqueles que ainda estão fechados ao cristianismo: não daqueles que escrevem o seu epitáfio, mas do próprio coração de um cristianismo vivo, dos crentes desta época, deste século. O que aconteceria se fosse o próprio cristianismo a apresentar-se entre as coisas seculares, se deixasse de lidar com o próprio fantasma e começasse simplesmente a anunciar-se como uma realidade que passou pela história, concluindo um ciclo vital? O que aconteceria se, em vez de nos preocuparmos com a falta de sacerdotes e com celebrações desertas, nos preocupássemos em abrir o nosso tesouro, o nosso tesouro milenar, o tesouro milenar de teologias e símbolos, de formas artísticas e imaginários, em propiciar uma entrega, simplesmente para que os seres humanos de hoje, as culturas atuais possam viver, respirar, descobrir a sua verdade, sem contrair qualquer dívida em relação ao nosso fantasma? O que aconteceria se, para que outros pudessem viver o seu século, o seu ciclo vital, renunciássemos a perpetuar o nosso e abraçássemos a figura da nossa passagem?
Antes de tudo, aconteceria o seguinte: teríamos, pela primeira vez, em cena uma religião que afirma em voz alta que o Eterno, o Fundamento, a verdade de Deus, não pertence a ela, não depende dela, não está à sua disposição. Um cristianismo totalmente secular seria um cristianismo capaz de proclamar a verdade de Deus, do cosmos, da complexa trama da experiência humana como aquilo que não pode ser produzido nem disposto por ninguém. Mas não o faria de forma irreligiosa, fá-lo-ia de modo pleno e precisamente religioso. Afinal de contas, a experiência do cristianismo sempre afirmou que apenas um século — um ciclo vital, o de Jesus — disse plenamente aquilo que não está disponível para nenhum outro século. É exatamente a tarefa do religioso, de forma mais geral, proclamar uma existência excêntrica, isto é, uma existência que não tem o seu centro em si mesma, a plenamente religiosa é precisamente a proclamação que reafirma: “Deus não sou eu”.
Há uma iconografia particularmente presente no românico medieval: a traditio legis, em que Cristo entrega a Pedro as chaves e a Paulo o rolo da Palavra. A cena tem uma história longa e gloriosa: encontra-se, por exemplo, no sarcófago de Estilicão, que provavelmente esteve na basílica de Santo Ambrósio desde o seu início e é atualmente está na base do grande ambão medieval. Nas montanhas da região de Lecco, acima de Civate, existe uma joia absoluta, São Pedro “al Monte”. Na iconografia da antiga igreja monástica, a traditio legis é representada duas vezes: primeiro num afresco no exterior da igreja, por cima do portal de entrada, e depois no cibório, acima do altar. Pois numa arte como a medieval, que é arte feita de repetições — as variações são significativas — não passa despercebido que, na traditio legis do exterior da igreja, os dois apóstolos estão com as mãos veladas, enquanto no espaço sagrado do cibório recebem o que lhes é confiado com as mãos nuas. Em síntese, ad extra os apóstolos declaram-se indignos, ad intra recebem o mandato sem mediação. Não vou entrar no mérito da interpretação, mas parece-me que hoje a figura merece ser reavivada. Representa precisamente o oposto do que costumamos fazer: no seio da Igreja, ou pelo menos em nós próprios, sabemos muito bem que não estamos à altura da missão; aceitamos também de bastante — talvez demasiado — bom grado que as nossas mãos não são dignas da tarefa que nos foi confiada. Sabemo-lo de modo resignado ou cínico (às vezes absolvendo-nos a nós mesmos); de qualquer forma, sabemo-lo. No entanto, exteriormente, esforçamo-nos por exibir o nosso melhor aspeto, como se estivéssemos perfeitamente à altura da tarefa, como se a Palavra e a Comunhão (o rolo e as chaves) fossem questões das quais pudéssemos serenamente ser garantes diante do mundo. A iconografia monástica sugere outra coisa: a indignidade da comunidade, a impossibilidade de coincidir com o Mestre é a forma ordinária, a maneira necessária da missão ad extra. A garantia, pelo contrário, é a tarefa do Espírito, que fala no íntimo.
Anunciar-se como secular, expor a própria inadequação, é uma figura intrínseca, original e sobretudo fecunda do anúncio cristão. É a mesma tarefa que os discípulos de Jesus assumiram, expondo nos Evangelhos a sua incapacidade de compreender o Mestre, a própria mediocridade, ao mesmo tempo que proclamavam a necessidade do seu anúncio. Numa perícope evangélica, Simão é referido como a pedra sobre a qual se funda a Igreja e como o Satanás que deve pôr-se no seguimento de Mestre.
Mas aconteceria uma segunda coisa com um cristianismo secular. E esta é, talvez, a oportunidade que o Evangelho tem de propor uma síntese entre ele mesmo e as culturas. Anunciar-se como secular significaria também convidar as culturas, qualquer cultura, a pôr-se no mesmo caminho. Significaria pedir às culturas que se encontram na cena mundial que se pensem a si próprias na sua secularidade e que o façam durante o seu processo vital, durante o seu século, sem libertar o próprio fantasma.
Parece-me que os dois grandes males que atravessam todas as culturas são as tentações identitárias e a indiferença. As primeiras exploraram durante muito tempo os sinais religiosos como instrumentos de uma coesão esvaziada de qualquer conteúdo; por sua vez, a indiferença imagina que as verdades podem simplesmente estar umas ao lado das outras, como se fossem universos independentes, tal como nas histórias desenhadas do multiverso. Para superar ambas, seria útil lembrar a cada cultura a sua secularidade, reafirmando que ela, tal como o cristianismo, é gerada por uma verdade que não lhe pertence. Mas — juntos, num único ato cultural — poderíamos também lembrar a cada cultura a sua necessidade imprescindível, na cena do século. Nenhum de nós é o Absoluto, mas cada um de nós é necessário para a sua revelação.
Podemos facilmente concordar que o coração de cada cultura é a sua língua. Ora, a língua é uma realidade que não pertence a ninguém, é um instrumento de que ninguém é senhor: felizmente, porque de outro modo cada ser humano deveria inventar uma a partir de zero. Qualquer cultura existe em virtude da nossa aceitação de não nos apoderarmos da língua e de utilizarmos um instrumento muito poderoso, sem que ele nos pertença. E, no entanto, este instrumento que não pertence a ninguém, se não o utilizarmos, se já não soubermos decliná-lo, não passa de um objeto morto: uma língua existe porque ninguém se apodera dela, mas está viva porque todos a articulam incessantemente.
Talvez alguém se lembre da parábola dos três anéis, contida na peça teatral Nathan, o Sábio, escrita por um dos grandes filósofos do Iluminismo, Gotthold Ephraim Lessing. Conta a história de um país longínquo cujos governantes possuíam um anel mágico, capaz de os tornar agradáveis a Deus e aos homens: passava de geração em geração para o filho mais amado. Mas um rei, incapaz de escolher entre os seus três filhos, decidiu recorrer a um artifício: mandou forjar dois outros anéis idênticos àquele; tendo-se tornado incapaz de distinguir o anel mágico, deu um anel a cada um dos seus filhos. Lessing conclui: “Que cada um tenha a certeza de que o anel é autêntico, (...) que cada um concorra para demonstrar o poder do seu anel à luz do dia, com a doçura, paciência, caridade e profunda devoção a Deus”. A parábola é interessante, mas descreve um estratagema, um engano para o bem, mas mesmo assim um engano: há ainda o fantasma de um pai que incumbe sobre a cena. O que o cristianismo secular poderia anunciar é o fim dos enganos: só há anéis verdadeiros. É uma sorte: podemos contar com tantos anéis mágicos e valorizar a autenticidade que torna os outros, como nós, agradáveis a Deus e aos homens. As culturas não são um artifício: todas elas são eternas precisamente por serem seculares.
Se compete a nós fazê-lo, é porque o cristianismo sempre o anunciou: esta realidade mais secular do que qualquer outra, o nosso corpo, com as suas feridas, as suas rugas, as suas misérias, está destinado a ressuscitar. O cristianismo intui que não é apenas nosso direito, mas um nosso dever concreto acreditar na eternidade do que é secular.
Roberto Maier