· Cidade do Vaticano ·

No dia 1 de agosto, o mundo já terá desperdiçado os recursos produzidos num ano

Earth Overshoot Day: o dia da loucura

 Earth Overshoot Day: o dia da loucura  POR-031
01 agosto 2024

«De que serve a lógica num mundo que perdeu a cabeça? No meio de tantos loucos, a pessoa sadia é sempre vista como um louco». É talvez a partir desta verdade frustrante e dramática — expressa há um século pelo escritor polaco Israel Joshua Singer — que devemos analisar muitas das injustiças do nosso tempo, que com frequência têm origem na loucura humana.

No dia 1 de agosto deste ano, acordaremos com a consciência de que esgotámos os recursos renováveis que o planeta nos poderia fornecer para todo o ano de 2024. No entanto, nenhum de nós iniciará um jejum de cinco meses para deixar que o ecossistema se regenere; ao contrário, continuaremos com a nossa exploração excessiva e insensata dos recursos naturais e o nosso consumo excessivo, gerando danos irreparáveis à natureza e à qualidade de vida na Terra.

Conhecida como Earth Overshoot Day, esta data é calculada todos os anos desde 1971, medindo a relação entre a biocapacidade do planeta para gerar novos recursos e a marca ecológica da ação humana, tudo multiplicado pelos dias do ano. Ao observar a impressionante evolução deste dia no calendário, ao longo de mais de cinquenta anos, compreende-se como este comportamento humano deve ser tratado, em primeiro lugar, como uma forma absoluta de loucura. De facto, o que seria senão pura loucura, deixar passar esta data de 25 de dezembro de 1971 para 30 de outubro de 1987, de 26 de setembro de 1999 para 27 de agosto de 2005, até chegar a 1 de agosto deste ano?

Atualmente, a humanidade consome 75% a mais do que os recursos que poderia ter se não os roubasse às gerações futuras. Isto significa que, para manter os atuais níveis de produção e consumo mundiais, precisaríamos de quase dois planetas. Isto apesar de cerca de 2 mil milhões de pessoas viverem em extrema pobreza e, por conseguinte, praticamente não consumirem.

A situação é de tal modo insustentável e autodestrutiva que exigiria até do mais perverso dos decisores um gesto de responsabilidade e uma mudança radical de rumo. Mas o salto civilizacional a que a história nos chama continua ausente! A humanidade parece totalmente incapaz de rever as suas prioridades para sair desta espiral de degradação. Com efeito, todos os raciocínios sobre esta questão, até os mais virtuosos e sofisticados, partem sempre do pressuposto de que os valores e os princípios que nos levaram a esta crise nunca poderão ser postos em causa e que, qualquer que seja a solução que se queira adotar, nunca poderá alterar as relações de força e as regras do jogo que nos trouxeram até aqui. Portanto, estamos num beco sem saída!

Mas qual é a raiz desta loucura que corre o sério risco de nos condenar, primeiro, a um planeta inabitável, do qual já temos antecipações preocupantes, e depois ao limite extremo da nossa extinção como espécie? Na estrondosa exortação apostólica Laudate Deum, o Papa Francisco adverte-nos contra a loucura do paradigma tecnocrático que «consiste, substancialmente, em pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia (20) e alimenta-se monstruosamente de si próprio (21)... baseando-se na ideia de um ser humano sem limites... Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer (...). É tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade (23)...  Infelizmente, como nos ensina também a bomba atómica... o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência  (24)...  o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites» (25).

Um mundo guiado pelo “paradigma tecnocrático”, informado e desenvolvido através de meios de comunicação que respondem à mesma lógica — como o Papa Francisco denuncia com veemência — com efeito, está a espalhar a semente da loucura em toda a humanidade, que deste modo é levada a considerar a crise ambiental e climática menos prioritária do que objetivos muito menos significativos e vitais, como o crescimento económico ou a concorrência nos mercados internacionais.

Mas será que, de facto, todos nós chegámos a pensar que o meio ambiente é menos importante do que a economia? Será que todos acreditamos que o hiperconsumo a que fomos levados é o melhor estilo de vida possível e que já não podemos ser felizes sem ele? Será que algum de nós se apercebe realmente de como esta loucura nos está a conduzir a uma infelicidade planetária da qual não há retorno?

O perigo de “homologação da loucura” deve ser de facto muito real, se até as associações que denunciam a superexploração do planeta chegam a propor, entre as soluções possíveis, a redução da natalidade! Uma consideração gravíssima se a analisarmos apenas nos seus significados contraditórios e perigosos. É claro que “vender” a equação “menos filhos = menos poluição” é muito fácil. Mas o que estamos a dizer? Talvez que é mais correto acumular riqueza do que dar à luz um filho? Que um direito não especificado à acumulação de bens e riquezas vale mais do que o direito à vida?

Este maravilhoso planeta azul é capaz de alimentar e oferecer condições de vida mais dignas a muito mais pessoas do que os atuais 8 biliões de habitantes. Para o perceber, basta considerar que, postos todos de pé — 4 pessoas por metro quadrado — os cidadãos do mundo poderiam estar contidos apenas no território provincial de Benevento. Por conseguinte, o problema da sustentabilidade não se deve ao excesso de população. Resulta, sim, da propensão exagerada a acumular, para além de qualquer razão, que o “homem económico” da era industrial acabou por desenvolver. E se já faz ferver o sangue nas veias pensar que, para garantir a 3.000 bilionários o direito de acumular riquezas que nem eles nem os seus descendentes poderão gastar, o sistema aceita que mais de 13.000 crianças morram de fome todos os dias, é realmente o cúmulo da loucura dizer que, para resolver os dois problemas, basta não fazer nascer essas crianças. Mas no que nos estamos a tornar?

Se, como nos informa a Oxfam, com os atuais níveis de acumulação, dentro de 10 anos assistiremos ao advento do primeiro trilionário da história — um homem na posse de mais de um trilião de dólares — então, em vez de reagirmos a esta notícia com uma piada engraçada, deveríamos todos sentir-nos profundamente indignados e considerar que essa riqueza não pode, de forma alguma, ser legítima. Mas isto não significa que não seja justo que uma pessoa procure o melhor bem-estar para si e para a sua família; pelo contrário, porque esse direito humano universal acaba automaticamente quando essa mesma riqueza se torna o fruto aberrante e inútil de um sistema que obriga milhares de milhões de pessoas a viver em condições trágicas; quando é legitimada por uma loucura coletiva que chega ao ponto de suprimir o instinto de sobrevivência que o Overshoot Day deveria despertar nas nossas mentes e nos nossos corações.

Pierluigi Sassi