· Cidade do Vaticano ·

Prefácio do prefeito do Dicastério para a cultura ao livro de Filomeno Lopes

Vemos, ouvimos e lemos: não podemos ignorar

 Vemos, ouvimos e lemos: não podemos ignorar  POR-033
08 agosto 2024

Publicamos o prefácio escrito pelo cardeal prefeito do Dicastério para a cultura ao livro escrito por Filomeno Lopes, que foi apresentado na Feira do Livro em Lisboa e publicado pelas Paulinas. O livro fala  do «racismo» em pleno século XXI, o que é um sinal negativo, de derrota da humanidade. Não se pode, porém, vencer a batalha contra este flagelo quando as suas raízes, as suas fontes vitais, permanecem desconhecidas da grande maioria e a sua origem filosófica, até hoje, escrupulosamente obnubilada. 

«Ninguém nasce a odiar os seus semelhantes por causa da raça, religião ou classe a que pertencem. Os homens aprendem a odiar. Mas se podem aprender a odiar, também podem aprender a amar, porque o amor, para o coração humano, é mais natural do que o ódio». (Nelson Mandela). Estas palavras tornam-se ainda mais impressionantes quando consideramos que foram proferidas por um homem que viveu 27 anos preso numa cela da prisão de Robben Island, perto da Cidade do Cabo, por defender ideais de justiça e liberdade. Nelson Mandela experimentou a perseguição do regime do apartheid, que durante anos humilhou um povo inteiro e o fez sentir-se excluído da sua própria nação. Quando foi eleito Presidente da África do Sul, em vez de retribuir com violência as ofensas sofridas, promoveu a reconciliação de todo o país, provando que, se é verdade que o homem é iniciado no ódio, também é verdade que pode ser ajudado a maturar o amor.

Este livro-carta aberta de Filomeno Lopes, um dos pensadores mais iluminantes da África lusófona, tem a força de um testemunho de quem sabe em primeira pessoa o que significa a discriminação racial: «Eu próprio fui vítima durante muitos anos e continuo a sê-lo...». É por isso que as suas palavras nos arrebatam, porque são palavras não só corajosas, mas verdadeiras. De facto, o poeta Paul Celan escreveu: «Quem tem mãos verdadeiras, escreve coisas verdadeiras».

Com a inteligência e a lucidez reflexiva que o caracterizam, Lopes analisa o fenómeno do racismo a partir da realidade italiana, na qual está inserido há cerca de 30 anos, em particular aquele sofrido pelos africanos da zona subsariana. O discurso ultrapassa naturalmente as fronteiras nacionais, alargando a problemática a nível mundial, e não só no que respeita à questão racial, mas a todo o tipo de discriminação.

O caminho que o nosso autor segue é aquele traçado por Mandela, mostrando como o cancro do racismo se infiltrou na sociedade devido aos “mestres” que, consciente ou inconscientemente, ensinaram a odiar. Mas a inversão deste devastador sentimento, tornado cultura da exclusão, é possível e necessário. Filomeno Lopes dirige-se diretamente às crianças e aos jovens de hoje com palavras sentidas, incitando-os a refletir sobre o fenómeno do racismo: «O meu objetivo com este texto é fazer com que nenhum de vós possa continuar a dizer “eu não sabia”. Têm agora elementos para sair da noite da institucionalização da imbecilidade que envolve atualmente toda a política europeia». Ele quer devolver ao remetente as mentiras vergonhosamente fabricadas e, através do instrumento da teoria (Amílcar Cabral), quer «gritar contra esta injustiça e desumanidade programada contra os indefesos da história, contra os negros-africanos em particular». Esta tarefa, como ele afirma, «é uma batalha civilizacional que só pode ser ganha em conjunto», ultrapassando as tentações demagógicas típicas da política de inimizade, de fechamento, de construção de muros.

Os preconceitos raciais que deixaram uma marca devastadora nas relações entre os povos, são difíceis de cancelar e só podem ser apagados através de um processo sério de reabilitação crítica da memória histórica no seio das sociedades. O caminho que Lopes propõe é o da educação: «É preciso encarar o problema de frente, numa perspetiva educativa libertadora, capaz de conseguir uma verdadeira erradicação deste triste legado histórico europeu e mundial, para que as gerações futuras se olhem a si próprias como uma orquestra sinfónica, longe dos preconceitos raciais. Só assim nascerá uma sociedade em que o racismo seja verdadeiramente e para sempre considerado um crime contra a humanidade».

É quanto propõe o Papa Francisco com o seu visionário projeto do Pacto Educativo Global, onde lança o desafio de mudar o mundo através da educação. No quinto objetivo do Pacto Educativo, o Papa convida todos a estarem abertos ao acolhimento do outro, promovendo programas de sensibilização numa perspetiva intercultural e inter-religiosa. Se a nossa geração adulta cresceu sob a influência negativa de preconceitos discriminatórios, é hora de lançarmos as bases para um futuro diferente através de uma educação que coloque a pessoa humana no centro.

Como ensinou a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen: «Vemos, ouvimos e lemos: não podemos ignorar». Agradeçamos ao pensamento profético de Filomeno Lopes não nos deixar mais ignorar.

José Tolentino de Mendonça