· Cidade do Vaticano ·

No caminho do amor humilde

 No caminho do amor humilde  POR-038
19 setembro 2024

No Evangelho deste Domingo xxv do Tempo Comum, continuamos a ler a chamada «secção do caminho» do Evangelho de Marcos (ver Domingo xxiv ), hoje a passagem de Mc 9, 30-37. Este texto intenso e sublime cai sobre nós como uma lâmina de dois gumes e envolve-nos em duas vagas avassaladoras: Mc 9, 30-32 e 9, 33-37.

2. A primeira acontece no caminho que desce de Cesareia de Filipe para Cafarnaum, um dia de caminho e de ensinamento de Jesus aos seus discípulos. Concentração máxima: Jesus a sós com os seus discípulos (ninguém de fora os acompanha) e um único dizer na sua boca de Mestre, que repetidamente ensinava: «O Filho do Homem vai ser entregue (paradídotai: passivo divino ou teológico) por Deus nas mãos dos homens, que o matarão, mas três dias depois de morto ressuscitará» (Mc 9, 31). Note-se, em todo o caso, que Jesus passará das nossas mãos violentas e assassinas, para as mãos paternais do Pai. Jesus ensina, portanto, pela segunda vez, a sua paixão, morte e ressurreição. Entenda-se bem: a paixão e a morte de Jesus são obra das mãos dos homens; a ressurreição é obra das mãos de Deus. Ficam aqui bem a descoberto as nossas mãos violentas e assassinas. Mas é estranho o comportamento dos discípulos de Jesus, que nos é dado a conhecer pelo narrador. Na verdade, aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não queriam compreender aquelas palavras e até tinham medo de as vir a compreender. É esta a mais correta tradução daquele verbo agnoéô, que não significa apenas «ignorar», «desconhecer», «não compreender», mas, mais do que isso, «não querer compreender». E era o medo de, porventura, virem a compreender que os impedia de fazer qualquer pergunta a Jesus (Mc 9, 32).

3. Leva tempo àqueles discípulos de Jesus, e a mim, e a nós, compreender que, se a maneira de ser de Deus é o amor, só o amor, então Ele tem de descer ao nosso nível, sujando as suas mãos de amor na mentira do nosso coração e na violência das nossas mãos, não nos opondo qualquer resistência, que é o nosso modo habitual de fazer e que faz aumentar a violência, mas amando também a nossa violência até ao fim e ao fundo. Aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não querem nem sequer pensar nesta maneira de viver... e de morrer. Por isso, não querem compreender o verdadeiro caminho do amor que Jesus ensina, e, porque não querem correr quaisquer riscos, não ousam sequer fazer perguntas.

4. É aqui que somos atingidos em cheio pela segunda vaga do texto de hoje. Chegados a Cafarnaum, e tendo entrado na casa, passando do caminho para a casa (seguramente a casa de Simão Pedro), somos confrontados com uma pergunta certeira de Jesus acerca do assunto que vínhamos a debater (dialogízomai) no caminho (Mc 9, 33). Mas se já antes não arriscámos perguntar nada a Jesus, agora também não nos atrevemos nem queremos responder. É o narrador que tem de nos passar as informações, duas informações: 1) que «eles (como nós) se calavam» (esiôpôn: imperf. de siôpáô), implicando este imperfeito um silêncio continuado e comprometedor; 2) que tinham disputado (dialégomai) no caminho uns com os outros sobre qual deles fosse o maior (Mc 9, 34). Note-se que a pergunta de Jesus supõe um debate de ideias (verbo dialogízomai), mas a anotação do narrador deixa supor uma luta de interesses (verbo dialégomai). Note-se ainda o contraponto: enquanto Jesus ensina o caminho do amor humilde e oblativo, até ao fim, os seus discípulos ocupam-se de grandezas e dos seus próprios interesses!

5. Neste momento, Jesus senta-se (modo enfático), chama para si (modo enfático) os Doze e diz-lhes (légei: pres. do verbo légô), a eles e a nós, num presente que ainda hoje ecoa no meio de nós: «Se alguém quer ser o primeiro, será o último de todos e o servo de todos» (Mc 9, 35). Entenda-se bem aquele «de todos», duas vezes dito, para evitar equívocos. Anote-se também que, no Evangelho de Marcos, Jesus só se senta três vezes (4, 1; 9, 35; 13, 3), assumindo todas elas particular importância: em 4, 31, Jesus sobe para um barco, senta-se e começa a ensinar à multidão muitas coisas em parábolas; em 9, 35 guarda o ensinamento de hoje sobre quem é o primeiro; em 13, 3 Jesus senta-se no monte das Oliveiras, em frente do Templo, depois de dizer aos seus três discípulos mais próximos (Pedro, Tiago e João) que daquelas grandes pedras do Templo herodiano não ficará pedra sobre pedra.

6. Voltando ao ensinamento de hoje: o Mestre está sentado a ensinar, e ensina agora com gestos e palavras: recebeu uma criança pequena (paidíon), colocou-a no meio deles e de nós, e disse: «Quem receber uma destas crianças pequeninas, no meu nome, recebe-me a Mim...» (Mc 9, 36-37). Note-se aquele: «No meio», que é o lugar mais importante. Note-se também o «no meu nome», que significa ao jeito de Jesus. Note-se ainda que Jesus não usa jogos de estatística. Fala de uma criança apenas. E também deixa claro que, para se receber uma criança pequenina, são precisas mãos maternais, que acariciam e dão vida, ao contrário das mãos dos homens violentos que agarram e matam, já atrás retratadas em Mc 9, 31. De resto, vê-se bem, em filigrana, que uma criança pequenina traduz todos os nossos irmãos dependentes, cuja vida depende completamente de nós, não nos sendo permitido, portanto, abandoná-los e voltar-lhes as costas.

7. Tanto se pode aprender com Jesus «na casa» e «no caminho», dois lugares particulares do encontro de Jesus com os seus discípulos, onde Jesus está a sós com os seus discípulos! O terceiro é a barca. Escutando atentamente Jesus, aprendemos a descer de nós abaixo, a abrir as nossas mãos fechadas e armadas, e a revestir-nos de gestos de amor novos, serviçais, maternais.

8. Já sabemos que o justo Jesus caminha por entre o sofrimento, o desprezo e a zombaria, obra das mãos dos homens. E assim também os seus discípulos. O fim, porém, é a glória da Ressurreição, obra das mãos de Deus. Um breve extrato do Livro da Sabedoria (2, 12.17-20), hoje também lido para nossa instrução, faz-nos ver os ímpios a conspirar de mil maneiras contra o justo, que os importuna com o seu comportamento, e a maquinar a sua morte, para se verem livres dele. Não faltam os motivos de zombaria, afirmando que querem verificar se é verdade o que o justo diz, pois afirma que é filho de Deus, e que Deus o assistirá e libertará das mãos dos ímpios (Sb 2, 18). Tudo semelhante à ironia sarcástica dos zombadores que passam junto da Cruz de Jesus (Mc 15, 29-32). Mas também é oportuno ver Sb 5, 1-15, o quadro que forma um díptico com o texto de hoje (Sb 2, 1-20). Em Sb 5, 1-15, os ímpios provocadores e zombadores reencontram-se, no dia do julgamento, lado a lado com o justo que maltrataram. Ao ver o justo de pé, apavorados e atónitos, dirão entre soluços de angústia: «Este é aquele de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de chacota, nós, insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura, e o seu fim infame. Como é que agora é contado entre os filhos de Deus, e partilha a sorte dos santos?» (Sb 5, 4-5). E confessam: «Sim, extraviámo-nos do caminho da verdade, a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Cansámo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição...» (Sb 5, 6-7). Um pouco como os discípulos de Jesus que, pelo caminho, se entretinham a debater grandezas e os seus próprios interesses. Mas Jesus ensina-nos a seguir por outro caminho!

*Bispo de Lamego

D. António Couto *