A presença das irmãs hospitaleiras em Portugal dura há mais de 130 anos, com a fundação do seu primeiro centro, Casa da Saúde da Idanha, remontando ao ano de 1894. Mais de um século de história no qual as irmãs procuram trazer ao mundo da saúde a sua missão de “Hospitalidade”, encarnando o espírito fundador de São Bento Menni. A “Hospitalidade”, como a interpretam, subdivide-se em oito grandes valores: sensibilidade em relação aos excluídos; serviço aos doentes e necessitados; acolhimento libertador; saúde integral; qualidade profissional; humanidade na atenção; ética em toda a atuação; consciência histórica. Hoje, a Congregação das Irmãs Hospitaleiras está presente em 26 países do mundo, com mais de 370 centros, incluindo Portugal, Brasil, Moçambique, Angola e Timor Leste, e é uma referência no cuidado terapêutico da saúde mental; revelando como é possível e útil unir a Ciência e a Fé na difusão do bem-estar da mente e do espírito. As especialidades clínicas dos centros hospitalares estendem-se desde a psiquiatria e saúde mental, à deficiência intelectual, reabilitação psicossocial e ainda ao tratamento de comportamentos aditivos e dependências. Tivemos a oportunidade de conhecer a irmã superiora Isabel Morgado, diretora da Clínica Psiquiátrica de S. José em Lisboa, fundada em 1956. A unidade hospitalar, baseada no espírito fundador da Congregação, tem como prioridade uma perspetiva holística e humanizada do paciente e é suportada por uma equipa de profissionais de saúde com uma visão multidisciplinar do tratamento psiquiátrico, formados nos valores e visão do projeto da Congregação.
Bom dia, irmã Isabel. Desde já lhe agradeço por ter gentilmente aceite o nosso convite para esta conversa. Há quantos anos faz parte da Congregação das Irmãs Hospitaleiras? Foi sempre um seu objetivo o de fazer parte desta Congregação e de se dedicar aos cuidados de saúde, principalmente no âmbito da psiquiatria?
Fiz a primeira profissão religiosa a 24 de abril de 1969, precedida de duas etapas de preparação: um ano de postulantado e dois anos de noviciado. Há que realçar o contacto que desde muito novinha mantive com uma tia irmã hospitaleira, que pelas suas qualidades humanas no cuidado aos doentes — delicadeza, escuta, atenção, ternura, alegria, serviço, transcendência no atuar — me marcou profundamente. Ela foi para mim a estrela da Hospitalidade, porque na missão hospitaleira que realizava me transmitia a beleza de servir ao estilo de Jesus, o Bom Samaritano da humanidade.
A preparação para a missão hospitaleira, a vivência e o aprofundamento da resposta ao chamamento da consagração para sempre ao Senhor, na inteireza do ser e no estar ao Seu serviço nos irmãos mais frágeis, prosseguiu com muito entusiasmo no tempo de juniorado e continua a ser a força motriz que me projeta para além das minhas fragilidades. Fiz a profissão perpétua a 23 de setembro de 1973, na Casa-mãe, em Ciempozuelos — Madrid. Estou, ou melhor, pertenço à Congregação há cinquenta e cinco anos.
A nossa Congregação de Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus foi fundada por S. Bento Menni juntamente com Maria Josefa Recio e Maria Angustias Giménez, em 1881, para dar resposta à situação de abandono, em termos de cuidados de saúde e de exclusão social, das mulheres com doença mental.
De que maneira é que o vosso projeto mudou/se adaptou com o passar do tempo?
Não podemos dizer que o projeto tenha mudado na sua essência, mantém a sua identidade, o carisma e os valores. Continua a ser atual a nossa missão: “encarna e exprime o carisma da Hospitalidade no acolhimento, assistência e cuidado especializado e preferencial pelos doentes mentais, deficientes físicos e psíquicos e outras pessoas doentes, tendo em conta as necessidades e urgências de cada tempo e lugar, com preferência pelos mais pobres e esquecidos” (Carta de Identidade, 18).
O projeto hospitaleiro, na esteira do espírito dos fundadores, foi ganhando amplitude na implantação, na diversidade de respostas: oferece uma assistência aberta, dinâmica e atualizada, num clima de elevada humanização e qualidade integral e em constante renovação, conjugando avanços tecnológicos e humanização, “ciência e caridade”.
O modelo assistencial hospitaleiro baseia-se em três premissas irrenunciáveis: assistência à pessoa na sua integridade, respeito pela sua dignidade e assistência personalizada e interdisciplinar para a reinserção na sociedade.
A Obra Hospitaleira ao longo destes 143 anos tem ampliado a sua ação a nível de implantação. Está em quatro continentes — Europa, América, África e Ásia — e 26 países. Em Portugal a Congregação tem ao serviço da missão 12 centros — 8 no Continente e 4 nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores.
Quantas pacientes tem, de momento, a Clínica Psiquiátrica de S. José?
Atualmente a Clínica cuida e acompanha em internamento cerca de duzentas pessoas, distribuídas por oito unidades: duas da área psicogeriatria ( u 1 e u 4); duas de psiquiatria de evolução prolongada ( u 3 e u 5); duas unidades de deficiência intelectual ( u 6 e u 7); uma unidade de psiquiatria de curta e média duração ( u 2); uma de curta permanência ( u 8); e uma residência de treino da autonomia.
Em ambulatório a cpsj disponibiliza consultas externas de psiquiatria geral e de psicologia clínica, de psiquiatria especializada do comportamento alimentar; hospital de dia para perturbações do comportamento alimentar; residência e área de dia para reabilitação psicossocial.
Quais sãos os distúrbios mais frequentes? Também a sua frequência e impacto se foram alterando ao longo do tempo?
Os pedidos mais frequentes, para curto ou média duração, são as depressões, logo seguidas de situações de demência, porque os serviços públicos respondem mal ou não respondem nestas áreas, estão totalmente ocupados com os doentes psicóticos.
A depressão é a patologia principal a que respondemos nos últimos anos e, devido à questão demográfica de uma população cada vez mais envelhecida também recorrem as pessoas com demência. E estas mais doentes também fisicamente.
Os doentes que nos são enviados pelos serviços públicos para longa duração são ainda doentes psicóticos muito degradados e sem apoio social e familiar.
Noutros centros hospitaleiros, na área da adolescência, estão a aparecer, há um tempo para cá, cada vez mais perturbações do desenvolvimento do espectro do autismo. Verifica-se que a dinâmica das relações e outros fatores vão transformando as patologias.
Nas suas palavras, que espaço deve ocupar a fé nos cuidados de saúde? Qual a sua importância?
A nossa forma de concretizar a Hospitalidade está enraizada no humanismo cristão e na conceção integral da pessoa, na sua pluridimensionalidade, o que implica uma assistência holística, abrangente de todas as dimensões.
Assim, o espaço da fé como atenção espiritual e religiosa constitui um princípio nuclear da assistência hospitaleira integral. É reconhecida e apresentada como um direito da pessoa assistida e da sua dignidade e faz parte da tradição, identidade e valores hospitaleiros institucionais, mas sempre oferecida na liberdade de a pessoa aceitar ou recusar essa atenção.
“A originalidade desta ação pastoral é considerada e reconhecida como um recurso saudável e benéfico no processo terapêutico e formativo (…) Atender às necessidades espirituais e religiosas requer uma metodologia atualizada e adaptada às particularidades dos destinatários, no âmbito da sociedade mais secularizada e plural.” (Assistência em Irmãs Hospitaleiras 3.6, p. 54)
E esta importância da fé em Deus e na sua compaixão é, segundo a irmã, ainda mais premente quando se trata de distúrbios mentais? Porquê?
A missão da Irmã Hospitaleira do Sagrado Coração de Jesus veicula uma experiência profunda da misericórdia, da bondade e da compaixão de Deus, revelada e expressa por Jesus na sua existência histórica, como divino Samaritano da humanidade sofredora. Todos — Irmãs, Colaboradores, Voluntários, Leigos hospitaleiros — somos chamados, desde a vocação específica de cada um, a incarnar a missão sanadora, libertadora de Jesus através da prática da hospitalidade. Esta praxis constitui a nossa forma de evangelizar, de anúncio do Reino.
Compreende-se que responder a esta missão samaritana pressupõe um percurso de conhecimento e assimilação da cultura e dos valores hospitaleiros. A nossa grande preocupação é realizar essa transmissão pelo anúncio do carisma, mas especialmente pelo contágio, o testemunho de vida.
Há algum momento, história, episódio, que a tenha deixado particularmente sensibilizada e orgulhosa por fazer parte desta instituição? Gostaria de o partilhar connosco?
Neste percurso de aprendizagem da vivência hospitaleira, gostaria de sublinhar a experiência que fiz logo na etapa do postulantado, na Casa de Saúde da Idanha. A Madre mestra colocou-me num pavilhão que tinha como patrono Santo António. Algumas doentes já permaneciam ali há vários anos, mas recebíamos também doentes em situação de crise aguda de patologia psicótica. O estado de agitação, a desconexão de pensamento, a confusão mental, a desvinculação da realidade, a rejeição da alimentação constituíam manifestações claras do adoecer mental. Este estado mantinha-se durante algum tempo, apesar da aplicação farmacológica e tratamentos afins.
A determinada altura a agitação ia-se reduzindo, alguma clareza e lógica nas afirmações, atitude mais colaborante, crescente autonomia na higiene pessoal, e uma mulher nova vai emergindo como que por milagre. Esta mudança espantava-me e eu a colaborar nesta ressurreição com toda a minha inabilidade ao lado de Irmãs Hospitaleiras, que recriavam vidas com a sua entrega diária, o seu saber e experiência, mas sobretudo com o Amor sem limites dum semelhante ao de Jesus!
Sabemos que a Congregação está presente, também, em Angola e Moçambique: Teve oportunidade de experienciar a vossa missão em África? Quais são, no seu conhecimento, os grandes desafios do cuidado da saúde mental nestes países?
Não estive integrada com permanência em nenhuma comunidade em África, mas visitei as duas comunidades e as respetivas missões apostólicas. Tive oportunidade de contactar de perto com a pobreza, algumas situações de doença e, concretamente, de doença mental. Face ainda às superstições existentes e deficiente literacia, os doentes mentais em muitas zonas não são atendidos e encontram-se votados ao abandono.
As irmãs deslocam-se às periferias fazem um trabalho de educação para a saúde maravilhoso, vão identificando situações e respondendo às suas necessidades de saúde e a outras, numa visão integral da pessoa. Só a escassez dos recursos limita a sua intervenção. Podemos dizer que, praticamente, a totalidade da missão hospitaleira depende financeiramente da solidariedade ativa da Província de Portugal e também de alguns donativos de associações e iniciativas dos centros hospitaleiros e do voluntariado.
Quais são os projetos futuros da Congregação das Irmãs Hospitaleiras, em Portugal e no mundo?
Não vou responder diretamente, porque não conseguiria, mas manifestar algo do sentir da Congregação expresso no Documento do xxii Capítulo Geral, que se realizou sob o lema “Revesti-vos de entranhas de misericórdia” — ocorreu em Roma, de 24 de abril a 26 de maio de 2024.
Como refere o documento, o percurso capitular de todos os participantes foi iluminado por um propósito com visão carismática que apresenta um elenco de sublinhados muito fortes, mas que vou citar o último, na íntegra: Sentimo-nos chamadas a ser uma Congregação transformada pela misericórdia do Coração de Jesus; profética na proximidade simples e alegre; e geradora de comunidades abertas a novos dinamismos do Espírito, inter-relacionadas pelo carisma e pela missão, e testemunhas da esperança no cuidado da vida frágil, sinal que anuncia a nova humanidade.
Maria Helena Sequeira