No Brasil, nas florestas tropicais onde as comunidades indígenas vivem há milénios, a terra continua a ser manchada de sangue. Terra que para estes povos significa vida, história, identidade, sustento, sobrevivência. Nos últimos meses, os índios, sobretudo nos Estados da Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul, têm sofrido «ataques violentos, inclusive por parte de agentes particulares e forças policiais, que provocaram deslocações forçadas e morte trágica de vários membros que defendiam as suas terras». A denúncia é do Alto comissariado da Onu para os direitos do homem na América do Sul e da Comissão interamericana para os direitos humanos (Cidh). Numa declaração conjunta, manifestaram «profunda preocupação» pelo aumento das violações contra as populações indígenas «que procuram defender os seus direitos territoriais».
Segundo um relatório do Conselho indigenista missionário, órgão da Conferência nacional dos bispos do Brasil, em 2023 um indígena foi assassinado a cada dois dias, num total de 208 pessoas mortas no país. Em 2024, os abusos não cessaram; aliás, a situação «agravou-se devido à lentidão na demarcação das terras indígenas e à contínua incerteza jurídica» e «piorou depois da aprovação da Lei 14.701 pela Câmara dos deputados, em outubro de 2023».
Esta medida, mais conhecida como Marco temporal, altera os critérios de reconhecimento dos territórios, impedindo a reivindicação de terras onde os povos nativos não estavam presentes até 5 de outubro de 1988, quando a atual Constituição entrou em vigor. Trata-se de «uma lei», destacam a Onu e a Cidh, «aprovada apesar do veto do executivo e de uma decisão precedente do Supremo Tribunal Federal (Stf), que a declarou inconstitucional, enquanto se aguarda a decisão final do mesmo Stf sobre a sua constitucionalidade». O risco é que seja minado o direito à existência dos povos indígenas, bem como a sua pertença à identidade nacional do Brasil, enquanto as suas terras poderiam tornar-se presa das multinacionais da exploração madeireira, pecuária e mineira. O grito de dor dos povos nativos funde-se assim com o clamor da criação, saqueada por quem age apenas em nome do lucro, e pede mais uma vez ao mundo inteiro para ser ouvido. (beatrice guarrera)