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«O Líbano que vivi»

 «O Líbano que vivi»  POR-043
24 outubro 2024

ASofia viajou até Beirute com a inquietude de não saber o que encontraria, mas na leveza desse privilégio de quem vai e volta quando quiser.

Conta-me agora, 2 anos depois, de um Líbano que eu não conhecia, vivido nessa estranha melancolia de quem reconta uma memória como se fosse um sonho.

Tinha 22 anos quando partiu para fazer um semestre na Universidade São José de Beirute. No bolso carregava dólares americanos e os euros trazidos de casa, que lhe garantiam uma segurança que escasseia no país para onde se dirigia.

Aterrada no aeroporto, a jovem destemida rapidamente percebeu de que entrara num mundo muito diferente. Por momentos deixou-se inundar pelo ruído que a acompanhava no caminho até à nova casa: a confusão das estradas apinhadas de automóveis e de uma multidão de pessoas atarefadas, o mar de conversas dirigidas em línguas muito diferentes, uma imensidão de prédios altos que demarcavam os longos anos de variados conflitos. «Foi duro, não vou mentir».

Beirute é feita dessa ambivalência que marca as ruas da cidade, entre a melodia das vozes vivazes que retratam uma terra viva e repleta da sua humanidade e os edifícios que recontam uma história de guerras, crises económicas, cansaço.

Mas os dias passavam e o bairro Ras el Nabeh de Beirute foi-se deixando descobrir na sua quotidianidade. Os libaneses, com os seus sorrisos fáceis, amaciavam a saudade de casa, numa hospitalidade que a jovem italiana nunca antes tinha experienciado: convidavam-na para almoçar, com um entusiasmo palpitante para lhe dar a conhecer as iguarias autóctones e uma ânsia comovente de partilhar as suas histórias. Abriam as portas de suas casas, a maioria humildes e privadas desses luxos banais a que estava acostumada. E a Sofia sabia que tinha muita sorte por viver numa casa com acesso a eletricidade 12 horas por dia (apenas duas das quais asseguradas pelo Estado Libanês). «12 horas? Rapidamente aprendes que são mais do que suficientes».

Com o passar do tempo foi conhecendo um Líbano diferente, a visão turva foi-se libertando da ideia de uma terra conhecida através de recontos de um Oriente flagelado, e abriu-se a um mundo novo. Mundo, esse, de uma imensidão cultural que lhe doa uma cor dificilmente comparável e onde coabitam em bairros vizinhos pessoas de diversas etnias e religiões: umas que em tempos encontraram no Líbano o porto seguro que procuravam, outras que nele viram oportunidade de novo negócio. A sociedade funde-se nesse misto de histórias que levaram os seus antepassados até este país: Arménios, Sírios, Franceses, e tantos outros, presentearam o Líbano com a sua famosa distinção, «que é a sua maior riqueza, mas também a sua maior chaga». De facto, a própria organização política do Estado reconta essa mesma história, com uma Constituição baseada na união da diversidade e na partilha do poder entre as duas grandes forças religiosas (cristãos maronitas e muçulmanos); que, porém, se revela frágil quando a instabilidade dificulta o entendimento. Porque um estado com toda esta diversidade, se o contexto assim o permitir, facilmente se torna ingovernável.

Viajou muito e deixou-se maravilhar por estas diferenças, pelo modo como a dificuldade criara a resiliência e de como encontrara dentro de si um novo espanto pelo Médio Oriente e por toda a sua beleza distinta, de edifícios de arquitetura estudada e peculiar, que se fundem entre o mar azul mediterrâneo e a cadeia montanhosa onde cai neve no inverno; da diversidade das línguas que se decifram dos cânticos religiosos; do povo cansado, mas esperançoso, e indestrutivelmente fiel à sua nação.

Foi assim que Sofia o viveu, nesta sua dualidade premente. Do alto do seu assumido privilégio experienciava a juventude enérgica da noite, onde não faltavam bares e discotecas como em qualquer outra metrópole por onde passara; e o dia na clara evidência do fosso que se erguia entre ela e a juventude libanesa.

Eu vivi-o com ela através das suas histórias. Crescida onde não falta eletricidade e aquecimento no inverno, onde a segurança nunca foi miragem, a Sofia teria feito quase tudo para voltar, agora, aos tempos vividos no bairro muçulmano de Beirute; antes que a bomba do ódio atingisse aquela que, outrora, chamara casa.

Maria Helena Sequeira