· Cidade do Vaticano ·

Entrevista ao cardeal Seán Patrick O’Malley

Só verdade e transparência podem curar esta ferida

 Só verdade e transparência podem curar esta ferida  POR-044
31 outubro 2024

Os trabalhos não foram fáceis, mas deram os seus frutos. Um deles é o Relatório anual apresentado no dia 29 de outubro. O cardeal Seán Patrick O’Malley, arcebispo capuchinho emérito de Boston, onde explodiu o escândalo dos abusos e atingiu enormes proporções, olha com satisfação para o documento redigido pela Pontifícia Comissão para a tutela dos menores, da qual é presidente desde a sua instituição em 2014. Em conversa com os meios de comunicação do Vaticano, o purpurado faz um balanço dos últimos dez anos e sublinha que muito foi feito na luta aos abusos, mas que ainda há muito a fazer.

Eminência, o Relatório anual é publicado exatamente dez anos após a instituição da Comissão para a tutela dos menores. Entretanto, que balanço faz do trabalho realizado até agora? E, depois, podemos considerar este Relatório como um ponto de viragem para a Comissão?

A Comissão começou o seu trabalho há dez anos, depois do pedido do Santo Padre Francisco, que desejava ter o apoio sobretudo de leigos especialistas para ajudar a Igreja católica numa situação tão dramática. Todos conhecemos o sofrimento, o dano que os abusos causaram não só às vítimas, mas também às suas famílias, à comunidade, ao sacerdócio e à Igreja em geral. Para nós foi um privilégio. Conseguimos reunir muitos especialistas, pessoas que dedicaram a vida inteira a estes problemas, a ajudar as vítimas e criar um ambiente mais seguro para crianças e vulneráveis.

Os primeiros anos foram um caminho muito difícil, estávamos com cerca de 20 voluntários a responder a um problema na Igreja universal. Mas, graças a Deus, crescemos nesta missão sempre com um forte apoio do Santo Padre. Nestes anos ouvimos muito a voz das vítimas e dos sobreviventes. E agora, depois de um caminho que não foi fácil, com a ajuda de Deus e de muita gente, de muitas vítimas também, sobretudo dos especialistas leigos, chegámos ao momento em que somos capazes de partilhar com o mundo o fruto das nossas investigações, das nossas conversas, do nosso trabalho.

Algumas vítimas são também membros da Comissão. Que reação espera delas a este Relatório?

Esperamos que as vítimas compreendam que este Relatório indica que há conversas no mundo inteiro sobre o safeguarding, que na Papua-Nova Guiné, em África, na Ásia, em todo o lado a Igreja está a fazer um esforço para responder ao sofrimento das vítimas e para promover um ambiente seguro para os menores.

Em setembro, na viagem à Bélgica, o Papa pronunciou palavras muito fortes contra os abusos. Podemos dizer que elevou a fasquia da sua condenação, que nunca faltou. Precisamente na Bélgica a questão abusos predominou a narrativa geral. Há uma forte recriminação em relação à Igreja. O trabalho da Comissão e este Relatório podem, na sua opinião, representar uma resposta às polémicas, críticas e também às exigências destas pessoas que pedem para que se faça mais?

Sabemos que há muito trabalho a fazer, mas o Relatório anual está aqui para indicar que começámos este caminho de resposta ao abuso na nossa Igreja e que há muito interesse. Também por parte dos bispos, sobretudo de nações onde se acabou de começar a falar de abusos sexuais. Devemos responder... E esperamos que as vítimas entendam que em toda a Igreja há uma inquietação para corrigir os erros, os crimes do passado.

No Relatório fala-se de progressos e de fracassos no domínio da tutela. Quais são os progressos e quais os fracassos?

Os progressos creio que são os protocolos que já existem, um mapa para percorrer um caminho seguro na Igreja. Em muitas partes da Igreja, porém, ainda é tabu falar do abuso e só a verdade, a transparência, a accountability podem curar esta ferida. Graças a Deus, depois da Cimeira no Vaticano para a tutela dos menores, o encontro (em 2019, ndr.) dos presidentes das Conferências episcopais mundiais convocados pelo Papa, em todos os continentes há um interesse em corrigir os erros do passado e em criar um ambiente seguro.

A educação para o safeguarding também é importante. As pessoas, de facto, pensam que é algo do passado, mas é um problema atual e devemos estar sempre vigilantes para proteger os mais pequenos. O ministério da Igreja depende dos nossos esforços. Digo-o sempre aos meus sacerdotes: o povo só acreditará em nós quando estiver convencido de que o amamos. Este ministério do safeguarding é crucial para a Igreja, deve ser sempre cêntrico como plano pastoral.

À luz do Sínodo em que participou, quais são as pistas, o caminho que seguirá a Comissão agora, depois do Relatório e com este impulso à sinodalidade, ou seja, uma maior colaboração entre leigos e bispos?

Tive a oportunidade de falar no Sínodo sobre a necessidade de ter uma resposta sinodal ao safeguarding na Igreja. Muitas vezes os bispos sentem-se muito isolados quando devem tomar decisões sobre um caso de abuso. Não o devem fazer sozinhos! Devem ter um grupo de peritos que podem aconselhar o bispo na tomada de decisões e ouvir as suas recomendações. Nos Países onde já existem estas review boards, viu-se que foi muito útil trabalhar em conjunto com os bispos para estabelecer decisões adequadas nestas matérias difíceis. (salvatore cernuzio)