Aprender a pôr em jogo a própria vida

 Aprender a pôr em jogo a própria vida  POR-045
07 novembro 2024

Um braçado de gravetos, um copo de água, um punhado de farinha, um tudo-nada de azeite. Juntando as pontas destes fios soltos, a viúva de Sarepta prepara-se para fazer uma última refeição de despedida da vida juntamente com o seu filho único. É nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé, nesta vida quase a expirar, que surge Elias, o homem de Deus, conduzido por Deus, que atira à pobre mulher mais um fio de voz e de esperança a que se agarrar: Deus. Não é a quantidade que importa; o que importa é a totalidade. Pelo fio de voz e de esperança de Elias, Deus não reclama alguma coisa; reclama tudo: o coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas! E nem a farinha se esgota na amassadeira, nem o fio de azeite deixa de cair da almotolia! Extraordinária lição para a pobre viúva de Sarepta (1 Rs 17, 10-16) e para nós, que atravessamos a secura da paisagem desta terra de novembro.

2. O coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas: assim se ouve ou se lê no famoso Shemaʽ Yisraʼel [= «Escuta, Israel»], de Dt 6, 4-5, que tivemos a graça de ouvir no Domingo passado ( xxxi ). E nesse lugar se diz também a Israel que deve formar com essas palavras um fio de luz e de sentido que deve atar ao coração, às mãos, aos pés, aos filhos (Dt 6, 6-9). Este fio é fundamental para segurar as pontas soltas dos podres, pobres fios da nossa vida.

3. Bem, neste contexto, o fio ou a linha poética e melódica do Salmo 146, que hoje cantamos e que põe Deus tão perto de nós, a fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para os braços de Deus, com aquele grito repetido: «Ó minha alma, louva o Senhor!». O Sl 146 é uma espécie de carrilhão musical, e convida-nos a cantar os «treze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os treze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (’emet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos (3), defensor dos últimos (4), que dá pão aos famintos (5), que liberta os prisioneiros (6), que abre os olhos aos cegos (7), que levanta os abatidos (8), que ama os justos (9), que protege os estrangeiros (10), que sustenta o órfão e a viúva (11), que entrava o caminho dos ímpios (12), o Deus que reina eternamente (13). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos a saborear musicalmente toda a liturgia de hoje. Os treze nomes de Deus, aqui mencionados, podem bem articular-se com os treze atributos de Deus que a exegese rabínica contabiliza em Ex 34, 6-7.

4. Na verdade, «Deus habita nos louvores de Israel» (Sl 22, 4). Habita nos nossos louvores, na nossa dedicação e devotação total a Ele, na nossa vida posta em melodia, fio ou linha melódica que ata o nosso coração ao coração de Deus, a nossa mão à mão de Deus. Foi assim, de modo sacerdotal, que Jesus Cristo se ofereceu totalmente ao Pai e a nós e por nós, deixando-nos à espera e a viver dessa espera na esperança da sua Vinda. Um fio tenso de luz e de sentido, a que se chama esperança, ata-nos para sempre a esse Senhor-que-Vem. Fio ou linha musical, vital, de cada Domingo, em que cantamos: «Senhor, vem!» (marana tha’), porque sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’). O Dia de Domingo deve imprimir em nós o «tique» da esperança, que em hebraico se diz tiqwah, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento. É a Lição de Hb 9, 24-28.

5. O Evangelho do Domingo xxxii do Tempo Comum, Mc 12, 38-44, põe em cena e em claro destaque uma viúva pobre que dá a Deus a sua vida toda, em contraponto com os escribas e muitos outros, que fazem bom teatro religioso (não é o caso do escriba do Domingo passado). Excelente inclusão literária no Evangelho de Marcos: da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público, neste Evangelho, em Cafarnaum, o povo exclama: «Este ensina com autoridade (exousía), e não como os escribas!» (Mc 1, 22); e a terminar a sua atividade pública neste Evangelho, é Jesus que ensina ao povo que não é como os escribas, pondo em realce o teatro religioso que os escribas fazem, e denunciando as injustiças sociais que cometem (Mc 12, 38-40). Para o compreender, basta passar os olhos pelas atitudes que Jesus realça no comportamento deles: deambular pelas ruas com longos vestidos brancos; prestar-se a deferências e saudações nas praças públicas, obrigando mesmo as pessoas a levantar-se à sua passagem; ocupar os primeiros lugares nas sinagogas; os primeiros divãs nos banquetes; explorar as viúvas, cobrando em excesso, em vez de defender o seu estatuto de dependência, um dos casos anunciados como sujeitos a um drástico julgamento de Deus em Ml 3, 5; fazer longas orações para serem vistos (cf. Mc 12, 38-40). Todo este teatro é condenável, mas o leitor atento reparará certamente na última nota, nas longas orações só por fora, porque colide diretamente com o que ouvimos no Domingo passado acerca da nossa relação com Deus: «amar a Deus», não por fora, não com adereços ou acessórios, não com coisas nem com truques, mas «com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento, com todas as forças» (Mc 12, 30). Pelo que Jesus faz ver, os escribas interessam-se pouco com Deus, e mais, muito mais, em captar as boas graças das pessoas, caindo na crítica que já vem desde Isaías: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está bem longe de mim» (Is 29, 13; cf. Mc 7, 6; Mt 6, 5).

6. A cena central passa-se no «átrio das mulheres» do Templo de Jerusalém, num lugar chamado «Casa do Tesouro» (bêt ha-gazît) (Mc 12, 41-44). Muitos ricos deitavam aí muito do que lhes sobrava (Mc 12, 41.44a), mas veio também uma viúva pobre que deu um quadrante (Mc 12, 42), que é uma coisa de nada, a 64ª parte de um denário! Jesus, que está lá sentado (posição do Mestre que ensina) chamou os seus discípulos para lhes passar de forma solene [«Em verdade vos digo»] o último ensinamento da sua vida pública: «Em verdade vos digo (Amên légô hymîn): esta viúva pobre deitou mais do que todos os outros na Casa do Tesouro; todos deram do que lhes sobrava; mas ela, na sua indigência, deu tudo quanto tinha, a sua vida toda!» (hólon tòn bíon autês) (Mc 12, 43b-44), entenda-se: tudo o que tinha para viver. Ao dar tudo o que tinha para viver, que é o sentido contido no termo grego bíos, a viúva pobre torna-se imagem de Cristo que dará a sua própria vida (psychê) (Jo 10, 11.15.17). Fio de sentido que liga este episódio ao que já encontrámos em 1 Rs 17, 10-16.

7. O Evangelho refere que a viúva é pobre. Duplamente desfavorecida, portanto. Enquanto viúva e enquanto pobre. Mas a tecla que soa mais forte é que deu tudo, ainda que tenha dado pouco: duas pequenas moedas (leptà dýo), ou seja, um quadrante (kodrántês). O quadrante é uma coisa insignificante: é a sexagésima quarta parte de um denário! E um denário é o salário de um dia de trabalho. A pobre viúva recuperá-lo-ia rapidamente, mal se pusesse a pedir! O acento não está posto na quantidade, mas na totalidade! É bom que, observando bem esta cena exemplar, aprendamos a passar da mera ajuda para o dom de nós mesmos. Dom total. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, deve pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços ou acessórios! Tudo, e não apenas o supérfluo! Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Ef 5, 2), por mim (Gl 2, 20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. A marca deste dom é a totalidade e a definitividade.

8. Dar a vida toda ou entreter-se com os adereços, os acessórios, o supérfluo, eis a verdadeira questão, meu irmão deste Domingo de novembro.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *