· Cidade do Vaticano ·

O amor paradoxal e libertador do coração de Jesus

07 novembro 2024

«Em 1943, ano da campanha norte-africana e do desastre final do exército italiano, Pio xii publicou duas encíclicas intituladas “O Corpo místico de Jesus Cristo” e “Os estudos bíblicos”. Elas deviam ter parecido ao povo italiano bem distantes das suas preocupações imediatas, mas essas preocupações eram passageiras, ao passo que os temas das duas encíclicas perdurarão enquanto os homens viverem».

Passaram 80 anos desde que o escritor inglês Graham Greene refletia sobre as escolhas de Pio xii num ensaio corretamente intitulado O paradoxo do Papa, mas a situação não mudou. Para o paradoxo do Papa, que é o do Evangelho, o mundo não estava e continua a não estar pronto. Efetivamente, comparando as duas situações pode-se observar que: hoje, tal como então, estamos num tempo de guerra e de guerra mundial; que o Papa publicou uma encíclica Dilexit nos , «sobre o amor humano e divino do coração de Jesus»; e finalmente que também este texto, tal como os do Papa Pacelli, poderia parecer distante das preocupações imediatas das pessoas do povo. A confirmação deste distanciamento pode encontrar-se na escassa atenção dada pelos meios de comunicação social à quarta encíclica do Papa Francisco, que na conclusão de Dilexit nos cita as precedentes e sublinha que «o que está expresso neste documento permite-nos descobrir que o que está escrito nas encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti não é alheio ao nosso encontro com o amor de Jesus Cristo, pois bebendo desse amor tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum» (217). Não se trata, portanto, de um texto marginal, “lateral”, mas que se coloca na origem, no centro propulsor do pontificado de Bergoglio.

O Papa coloca no centro da nossa atenção o coração, precisamente porque este é o centro do ser humano: «Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e corpo. Tudo está unificado no coração» (21) e «O coração é também capaz de unificar e harmonizar a própria história pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir sentido» (19) e hoje, este centro parece estilhaçado, evaporado: «Ora, o problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro íntimo do homem — o coração — vem de mais longe» (10), e mais adiante «uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade “anti-coração”» (17), por fim, «é por esta razão que, assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração» (22). É necessário voltar ao coração, só assim se pode “rebobinar a fita” e oferecer ao mundo ferido a possibilidade de um novo começo. É importante, no entanto, não cair na tentação de desclassificar este texto para a categoria empoeirada do “devocional”: «Por vezes, somos tentados a considerar este mistério de amor como um admirável feito do passado, como uma bela espiritualidade de outros tempos» (149), porque «a paixão de Cristo não é um mero evento do passado, pois dela podemos participar a partir da fé. A meditação da entrega de Cristo na cruz é, para a piedade dos fiéis, algo mais do que uma simples recordação» (154). A encíclica não olha para o passado, para as “preocupações passageiras”, mas para o futuro, não toca em temas ou práticas antiquadas, mas, pelo contrário, liberta-nos precisamente das heranças vazias do passado, porque, conclui o Papa, do regresso à contemplação do amor que brota do coração de Cristo «a Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades. Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece sempre de novo a quem quer amar. Só o seu amor tornará possível uma nova humanidade» (219).

Andrea Monda