Contar a guerra
Viver a guerra

Smoke rises following an Israeli airstrike that targeted the eastern Lebanese city of Baalbeck on ...
14 novembro 2024

No testemunho de jornalistas no terreno, as dificuldades de contar a guerra na Terra Santa. Que apresenta algumas singularidades em relação a outras guerras.

«O pior da guerra é que não conhece pausas. Não és tu que a segues, mas é ela que te segue. Dia e noite. Não te abandona quando terminaste o teu artigo ou a tua ligação de vídeo», diz Maria Gianniti, correspondente de Jerusalém da televisão pública italiana. Contar a guerra é viver a guerra. Não é apenas crónica, mas também o alcance de uma dimensão emocional inevitável, especialmente quando a guerra é a que se combate há mais de um ano em Gaza, e agora não só em Gaza. A mais longa das muitas guerras travadas em setenta e seis anos de conflito israelo-palestiniano. E a mais cruel. Que consumiu tantas, demasiadas vítimas inocentes. Uma guerra que é tanto mais longa quanto mais distante parece a sua conclusão. Como foi até agora narrada esta guerra? E como deveria ser narrada? Existe, fora de Israel e da Palestina, uma compreensão real do que está a acontecer? Perguntamo-lo entre jornalistas que, nestes treze meses, se cruzaram no trabalho e em fragmentos de vida.

Safwat Kahlout, 51 anos, de Gaza, foi jornalista e produtor sénior da «al-Jazeera», a estação de televisão do Qatar, durante muitos meses a única fonte de informação e de imagens da Faixa de Gaza. Na primavera passada, Safwat conseguiu deixar Gaza, juntamente com a esposa e os oito filhos, e encontrou abrigo temporário em Itália: «Vivi tantas experiências más desde a primeira Intifada, mas nunca imaginei ver o que vi nos seis meses de guerra após o 7 de outubro, durante os quais continuei a trabalhar para a televisão. Não era apenas uma guerra contra o Hamas, mas contra todos os palestinianos de Gaza. Deixei a minha casa imediatamente, a 13 de outubro, e com a minha família mudámos de residência várias vezes, procurando sempre um lugar mais protegido. Já não sei nada sobre a minha casa. Eu trabalhava todo o dia, mas sempre com grande preocupação pelos meus filhos. E eles estavam sempre preocupados comigo, com a minha inevitável exposição. Sem água, sem eletricidade, sem comida. Ainda tenho diante dos olhos aquela imagem assustadora do ministro israelita que, em direto na televisão, se mostrou a baixar a alavanca do fornecimento de eletricidade de toda a Faixa de Gaza. Continuei sempre a trabalhar e, quando não podia era porque estava ocupado a procurar água e comida para a minha família.

Até que, em abril, graças a uma minha anterior autorização de residência e à grande ajuda de colegas jornalistas italianos, consegui sair. Teria ficado em Gaza, a trabalhar, a informar, mas tinha de pôr os meus filhos a salvo.

Como fazias para transmitir naquelas condições?

Era uma labuta diária. Para ativar câmaras e transmissores, todas as manhãs procurava um pouco de gasóleo para fazer funcionar os geradores; por um litro de gasóleo pagava 35 euros. Ou então pedíamos aos hospitais para podermos ligar-nos aos seus geradores. Felizmente, tínhamos um bom stock de cartões sim estrangeiros. No passado, a «al-Jazeera» tinha um grande edifício em Gaza, que foi completamente bombardeado. Durante esses seis meses trabalhámos dentro das tendas.

Depois Safwat reflete sobre os jornalistas mortos em Gaza e procura dar um rosto a esse número tão impressionante quanto abstrato (aparentemente 170 desde 7 de outubro de 2023).

Entres eles há situações diferentes. Muitos eram freelancers que não conhecíamos ou com quem tínhamos apenas contactos ocasionais. Mas também houve aqueles com quem partilhámos anos de trabalho, o meu operador de câmara, por exemplo, com quem trabalhei e vivi durante catorze anos. Tínhamos planeado vir juntos para a Europa, mas ele não conseguiu: mataram-no antes. E o mesmo aconteceu com a família do meu chefe de redação, com quem partilhava a tenda da qual transmitíamos. E não sei se houve uma perseguição específica contra os jornalistas, mas houve certamente muitos mortos. Deixa-me dizer uma coisa: fornecemos imagens e informações à imprensa mundial, mesmo antes de 7 de outubro, quando era demasiado difícil ou perigoso para os jornalistas entrarem em Gaza. Teríamos esperado que a comunidade mediática internacional levantasse a voz para exigir uma maior proteção para os jornalistas palestinianos.

No plano dos conteúdos, quais foram as maiores críticas?

Entretanto diria que, pela primeira vez, nos deparamos com a situação de não só dar notícias, mas também de ser parte das notícias. E depois havia o terrível impacto emocional que tinham as imagens que recolhíamos. Sobretudo as crianças debaixo dos escombros. Deixas de conseguir dormir depois de um dia passado a captar imagens entre os escombros de Gaza. Não me parece que a mídia internacional tenham prestado um bom serviço. Têm sido, em geral, muito parciais, privilegiando a narrativa israelita. Posso compreender o défice de neutralidade, cada um tem as suas ideias, mas durante muitos meses nenhuma voz se levantou para invocar o cessar-fogo, o fim do massacre de civis. Por parte dos meios de comunicação ocidentais houve uma total dependência do relato de poucas agências internacionais. Para compreender bastaria fazer uma comparação sobre como foi diferente a cobertura do conflito na Ucrânia.

Severo é também o julgamento de Oren Persico sobre os meios de comunicação israelitas. Oren é um veterano do jornalismo israelita que desde 2006 supervisiona as orientações mediáticas do país através do site watchdog «The Seventh Eye». Numa entrevista recente à revista online «+972», publicada em Telavive, afirmou: «O sistema é deprimente, irritante, cheio de propaganda, cheio de mentiras. Por outro lado, não passa de um espelho da sociedade em que vivemos. Não é apenas culpa das interferências e pressões de Netanyahu para ter meios de comunicação social complacentes. É preciso, de facto, considerar dois fatores: a maioria dos meios de comunicação social são privados e o público, ao longo dos anos, tem-se deslocado cada vez mais à direita. Por isso, não querem perder espetadores e leitores, caso contrário não vendem publicidade. E depois há que lembrar que os jornalistas fazem, de qualquer forma, parte da sociedade israelita; muitos conhecem pessoalmente as vítimas do dia 7 de outubro, os reféns e os soldados que combatem em Gaza. Há uma resposta emocional natural, humana, mas deste modo põem de lado a sua integridade profissional: não é uma coisa boa, é um erro».

Por detrás de tudo «há um problema principal — diz Nello Scavo — correspondente do diário «Avvenire» — que foi o de impedir que a imprensa entrasse em Gaza para se poder documentar diretamente sobre o que estava a acontecer. Neste sentido, a guerra de Gaza apresenta uma unicidade relativamente a outros conflitos. Penso que se nos tivessem permitido entrar em Gaza, isso também poderia ter sido conveniente para Israel. Por exemplo, poderíamos ter documentado, também, os abusos que o Hamas comete contra a população civil da Faixa de Gaza, ou até a coerção de civis utilizados como “escudos humanos”, ou o torpe mercado negro das ajudas humanitárias que eram sequestradas pelos bandos das diversas fações palestinianas. O facto de Israel não ter querido aproveitar esta oportunidade conveniente não fez mais do que alimentar muitas questões sobre o que estava realmente a acontecer dentro de Gaza. As únicas informações que conseguimos obter foram aquelas transmitidas pelos jornalistas palestinianos que se encontravam na Faixa de Gaza, alguns dos quais deixaram lá a pele. No final, fica a perceção de que existe uma tentativa, mesmo dissimulada, de limitar o trabalho dos jornalistas».

Porque dizes dissimulada?

Porque, até quando escreves coisas indiscutivelmente verdadeiras e incontestáveis, depois és repreendido por um excesso de ênfase que caracterizaria uma atitude antissemita. Esta acusação recorrente contra qualquer pessoa que critica é francamente insuportável. É um descrédito que nem sequer faz bem a quem o lança. E isto contribuiu para aumentar uma polarização nociva já existente e para tornar mais difícil o nosso trabalho. Estou a pensar, por exemplo, no caso das bombas de fósforo branco lançadas no Líbano, sobre as quais ambos escrevemos. Não é uma questão que diz respeito só a Israel. Aconteceu-me o paradoxo de um artigo meu ter sido, ao mesmo tempo, ferozmente contestado em Itália, tanto pelos círculos pró-Netanyahu como pelos pró-Palestina. Estas disputas fazem passar para segundo plano a emergência humanitária do conflito. E deslocam o foco para o tema da “culpa”. Um tema que pode ser relevante quando se escreve um comentário, uma análise política, mas que é totalmente relativo quando se tem de escrever a crónica verdadeira de uma tragédia. O jornalismo de paz é aquele que faz perguntas, e muitas perguntas neste conflito ficaram sem resposta.

Manuela Dviri é uma jornalista e escritora israelita de origem italiana. Vive em Israel há mais de meio século e escreveu para o «Corriere della Sera», o «Haaretz e para o «Fatto Quotidiano». Os meios de comunicação social «do nosso país mostram um Israel fechado sobre si mesmo e nos seus problemas. Aqui não se sabe nada sobre o resto do mundo. Sobretudo, não se sabe nada de como pensam no estrangeiro relativamente ao que se passa aqui. O problema é que não saímos do trauma de 7 de outubro. Continuamos a vivê-lo. Enquanto o mundo seguiu em frente. A maioria das narrativas israelitas partem de 7 de outubro, ignorando um antes e um depois. É como se toda a população de Israel se sentisse, também, refém. Há uma grande lacuna, que é a falta de reconhecimento do sofrimento dos outros. De ambos os lados, na verdade.

E a mídia internacional?

Bem, deixa-me dizer: leio muita incompetência. E também muito partidarismo. É uma situação terrivelmente complexa, que dura há setenta e seis anos, e que não pode ser lida e explicada a partir de uma secretária a milhares de quilómetros de distância, ou com a atitude dos adeptos do estádio. O resultado é uma narrativa que parece o guião de um reality show. Mesmo os enviados que vêm aqui para fazer uma crónica da guerra e depois regressam a casa não conseguem assimilar as questões subtis culturais e antropológicas que estão na base do conflito.

Os teus artigos, pelo contrário, falam muito de dentro. Estás satisfeita com eles?

Procuro apenas não me afastar das coisas verdadeiras e das coisas justas. E também procuro relatar o sofrimento dos outros, o que infelizmente é impossível para muitos. Há uma coisa com a qual não estou satisfeita e pela qual me culpo: também eu, como muitos, tinha adormecido antes de 7 de outubro. Quero dizer, tinha-me acomodado nessa narrativa induzida por Netanyahu que ocultava a permanência de um problema palestiniano. O dia 7 de outubro, no seu dramatismo, foi uma chamada de atenção. Os meus artigos, deste ponto de vista, não são neutrais: penso que, no respeito da verdade contada, devemos ajudar quem quer resolver este problema. Com o reconhecimento de um Estado para os palestinianos.

Francesca Caferri, enviada especial do diário «La Repubblica», centra a sua reflexão nas palavras: «Pela primeira vez na minha experiência profissional, dei por mim a ter de pesar cuidadosamente cada palavra. Há palavras nesta história, como terrorismo ou terrorista, genocídio, legítima defesa ou vingança, que suscitam diversas perceções e reações, dependendo de quem as lê. Ou palavras que banalizam o horror da guerra, como neutralized ou casualties. Em Israel, na Palestina, bem como em Itália, as reações e as contestações por causa de uma única palavra utilizada tornam-se um caso político. E isto obriga-te, mesmo inconscientemente, a anestesiar as peças, impedindo-te de exprimir a realidade de forma transparente».

«Nello Scavo tem razão», retoma Maria Gianniti, correspondente Rai de Jerusalém há quatro anos: «O problema principal é a impossibilidade de entrar em Gaza. A fdi invoca duas razões: a impossibilidade de garantir a segurança dos repórteres e a possibilidade de estes constituírem um obstáculo às suas operações militares. Mas o facto é que fazer relatar uma guerra sem a poder ver é uma tarefa árdua, que te expõe também às parcialidades. Eu tive a oportunidade de entrar em Gaza embedded com fdi , duas semanas depois de 7 de outubro, por algumas horas. A primeira, e talvez única, entre os repórteres italianos. Mas não pude ver nem registar muita coisa. Apenas o início de uma destruição total que se consumaria nos meses seguintes. Só temos relatos e imagens através de intermediários que, no entanto, são suficientes para configurar a intervenção israelita para além das caraterísticas de autodefesa, mas pelo contrário são vingança. A barbárie de 7 de outubro criou um abismo que na minha vida profissional só tinha podido ver na Síria».

Qual é a leitura dos acontecimentos nos meios de comunicação israelitas?

A televisão israelita, tanto os canais privados como a rede pública «Kan 11» não mostram Gaza. Isto reforça na opinião pública um sentimento de centralidade exclusiva do próprio sofrimento. Na imprensa escrita a situação é diferente: a imprensa israelita mostra que é livre e forte. No «Haaretz» ou no «Times of Israel», por exemplo, lemos críticas a Netanyahu e ao seu governo, muito mais severas do que as que podemos encontrar na imprensa ocidental e italiana. Enfrentamos, depois, uma dificuldade que eu diria histórica e que pode ser resumida na frase recorrente entre nós: «No Médio Oriente nada é o que parece». Há um emaranhado de relações transversais, internas aos aparatos, muito pouco transparentes, que é difícil de representar. E é difícil explicá-las e indicar uma escala de prioridade das notícias aos colegas dos vários escritórios.

Trabalhas aqui, mas também vives aqui há alguns anos.

Desde que a guerra começou, já não consigo viver no país. Tens de te desdobrar enquanto cá estás. Não é uma vida verdadeira. As aplicações que nos informam em tempo real onde estão a cair os mísseis do Hamas ou Hezbollah, o barulho triste à noite dos caças bombardeiros israelitas que sobrevoam Jerusalém em direção ao norte, e todas aquelas imagens horríveis que te passam pelo ecrã durante o dia: quando acabas à noite desabas. Há um impacto emocional no nosso trabalho que nem o profissionalismo mais frio e cínico consegue apagar. Há uma coisa que me pesa muito: já não consigo ver a beleza à minha volta, já não consigo ver a beleza extraordinária e única de Jerusalém.

Roberto Cetera