· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do universo

A soberania de um Amor frágil

 A soberania de um Amor frágil  POR-047
21 novembro 2024

A«Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei», com esta denominação, foi instituída pelo Papa Pio xi , em 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio xi , homem de ação, que já tinha fundado a Ação católica em 1922, instituiu então esta Festa de Cristo Rei com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de outubro. A reorganização da Liturgia no pós Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, alterando-lhe a denominação para «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».

2. «O Senhor Reina». É assim que abre o Salmo 93, que hoje cantamos. Esta locução verbal — «o Senhor reina» — é também a mais usual no Antigo Testamento para dizer Deus na ação de reinar, isto é, de salvar, justificar, perdoar, criar. Na verdade, reinar é salvar, isto é, trazer a prosperidade, o bem-estar e a alegria ao seu Povo. É esta a missão do rei bíblico. Salvar é justificar. Justificar é, no seu sentido mais profundo, transformar um pecador em justo. Justificar é, portanto, perdoar. Neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer, dado que, transformar um pecador em justo é igual a criar ou recriar. E da ação de criar também só Deus é o sujeito em toda a Escritura. Já se sabe que o Novo Testamento transforma o ativo «Deus Reina» no mais abstrato «Reino de Deus».

3. Tanta e quase indescritível riqueza, a de um Deus, que o Livro de Daniel 7, 3-12 apresenta solenemente sentado no seu trono de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o poder das quatro bestas enormes saídas do mar com aspeto terrível, e que se assemelham a um leão com asas de águia, um urso com costelas na boca, um leopardo alado com quatro cabeças, e um monstro metálico aterrorizador, com enormes dentes de ferro que tudo tritura, cospe e espezinha debaixo das enormes patas. Tinha ainda dez chifres na cabeça, mas nasceu-lhe, entretanto, outro mais pequeno e insolente, com uma boca que proferia palavras arrogantes. Estas bestas representam quatro impérios: babilónio, medo, persa e grego (de Alexandre Magno e seus sucessores). Os dez chifres são os reis da dinastia Selêucida, e o décimo primeiro é Antíoco iv Epifânio (175-163). O tribunal divino toma assento para julgar o arrogante Antíoco, que é morto e destruído. E vê-se então, em contraponto com as bestas que saem do mar, símbolo da desordem e do mal, o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do mundo celeste, portanto. A ele é entregue o reino eterno, não assente no poder prepotente da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Dn 7, 13-14).

4. No Livro do Apocalipse 1, 5-8, este Filho do Homem tem um nome. Chama-se Jesus Cristo. Aparece igualmente sobre as nuvens do céu e ostenta, entre outros, o belíssimo título de «Aquele que nos ama» (Ap 1, 5). E é por este Amor levado ao extremo que vence, sem combater, este combate, amando, abraçando, sofrendo, sorvendo e dissolvendo o poder da brutalidade, como sucede aos poderosos da terra na batalha de Harmaguedôn (Ap 16, 14 e 16; 17, 14; 19, 11-21). Também não é assim de admirar que, neste grande Livro do Apocalipse, o mar, que já vimos no Livro de Daniel como fonte da confusão e do mal, deixe de existir (Ap 21, 1). Vem assim a toda a luz a soberania nova do Filho do Homem, que é Jesus, «Aquele que nos ama». A sua soberania é o Amor, que é Primeiro e Último (Ap 1, 8). É Primeiro, e, por ser Primeiro, é também Último. Se é Primeiro e é também Último, então o Amor é a soberania verdadeira, a única soberania portanto, porque tudo o resto cai e fica pelo caminho. Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o poder velho e podre da violência e da brutalidade das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal, que se foi insinuando nas pregas do nosso coração. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, ganância, importância, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor frágil que é desde sempre e é para sempre, e que vence, sem combater, a nossa prepotência!

5. Tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, sofrendo-a, sorvendo-a, dissolvendo-a e absolvendo-a. É assim que o Amor Reina, Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Aí está então a página divina do Evangelho deste Último Domingo do Ano Litúrgico, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo: Jo 18, 33-37. Os Judeus e Pilatos representam, no Evangelho de hoje, os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência e estupidez. Os quatro Evangelhos documentam a pergunta de Pilatos a Jesus: «Tu és o rei dos Judeus?» (Mt 27, 11; Mc 15, 2; Lc 23, 3; Jo 18, 33). Nos sinóticos, Jesus dá uma resposta breve: «Tu o dizes» (Mt 27, 11; Mc 15, 2; Lc 23, 3), para logo se remeter a um silêncio habitado e teológico (Mt 27, 12; Mc 15, 4; Lc 23, 9), à maneira do Servo de yhwh , Cordeiro conduzido ao matadouro, mas que não abriu a boca (Is 53, 7). João, ao contrário, apresenta um longo diálogo entre Jesus e Pilatos, em que o ponto mais alto está nas palavras de Jesus: «O meu reino não é deste mundo; o meu reino não é daqui» (Jo 18, 36). E explica bem Jesus a Pilatos e a nós que, se o seu reino fosse deste mundo, se fosse daqui, lá estariam certamente, para o defender, as suas forças militares. Em vez dessa quinquilharia, o seu Reino assenta num Amor novo e subversivo, que não pode deixar de amar a nossa violência até ao fim e ao fundo, sorvendo-lhe todo o veneno.

6. Fica bem à vista, neste Evangelho de João, que o processo de Jesus se transforma numa espécie de farsa ou pantomina, com sucessivos fora e dentro de Pilatos, sete no total. Isto, porque os judeus não querem contaminar-se, porque querem comer a Páscoa, e só o podem fazer estando ritualmente puros. Ficariam impuros se pisassem terreno pagão, como era o pretório de Pilatos, ou se lidassem com um morto, que era o que queriam que acontecesse a Jesus, como bem deixam entender quando respondem a Pilatos, que os manda julgá-lo segundo a sua lei (Jo 18, 31a): «A nós não é permitido entregar ninguém à morte» (Jo 18, 31b). Com esta estratégia, pretendem atingir três objetivos: 1) eliminar fisicamente o Nazareno; 2) desacreditá-lo aos olhos do povo; 3) fazer recair toda a responsabilidade sobre os romanos. Em boa verdade, os judeus querem que os romanos condenem Jesus à morte por crucificação, mas eles não se querem comprometer. Instados a avançar com uma acusação concreta (Jo 18, 29), não o fazem, e apenas se atrevem a dizer que é um «malfeitor» (kakòn poiõn), isto é, um delinquente comum (Jo 18, 30), que não levaria a nenhuma pena grave. Não dizem que é um «revoltoso» (lêstês), que os romanos poderiam entender como um zelota ou opositor dos romanos, o que já poderia implicar uma pena grave. Os judeus pretendem esquivar-se, e deixar tudo nas mãos dos romanos. Por isso, se nota que Pilatos parece mais interessado nos acusadores judeus, para não se deixar levar por eles, do que no implicado. Pilatos interroga primeiro os judeus, e depois Jesus. O processo romano baseava-se unicamente no interrogatório. No processo judaico, era obrigatório ouvir testemunhas. No tu a tu de Pilatos com Jesus, vem ao de cima a Verdade que é Jesus e a retórica vazia de Pilatos.

7. Jesus é Rei, não dos judeus, como se designava Herodes, mas do Reino de Deus, isto é, da Verdade, da Paz e do Amor. As coisas são de tal ordem, tão novas, que, daqui para a frente, a partir da entrada de um tal amor no mundo, todas as formas de poder se devem considerar superadas. Na verdade, Jesus é Rei na medida em que contrapõe o amor ao poder. A Igreja participa nesta soberania de Cristo, assumindo até ao fim a mais humilde e radical atitude de serviço à humanidade não, servindo-se da humanidade, mas servindo a humanidade em cada ser humano, de acordo com o «código da autoridade cristã»: «Sabeis que aqueles que se consideram chefes das nações, as dominam, e os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não será assim entre vós; ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós, seja vosso servo, e aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja escravo de todos. Na verdade, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos» (Mc 10, 42-45). Compete à Igreja manter bem aberto este golpe que Cristo infligiu a qualquer forma de poder e a todo o mal.

8. Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as trevas, as pregas e as pedras do nosso coração empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos, Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem. Dissolve a besta brava que há em nós e que, à imagem de Caim, não fala, mas trucida e come o outro. Hoje é o Dia da celebração de um amor novo e de uma nova ordem assente, não no poder, mas no amor e na verdade.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *