· Cidade do Vaticano ·

O Pontífice aos participantes numa conferência da Biblioteca Apostólica do Vaticano

O cuidado da cultura para responder ao conflito de civilizações e ao colonialismo ideológico

 O cuidado da cultura para responder ao conflito  de civilizações e ao colonialismo ideológico  ...
21 novembro 2024

O reconhecimento do «importante papel» desempenhado na «defesa do legado histórico» e na «promoção do saber» e o encorajamento a continuar a trabalhar a fim de que as bibliotecas sejam «lugares de paz, oásis de encontro e de livre debate»: eis as palavras dirigidas pelo Papa Francisco a uma centena de participantes na conferência da Biblioteca Apostólica do Vaticano “Conservata et perlecta aliis tradere. Bibliotecas em diálogo”, que teve lugar de 14 a 16 de novembro. O Pontífice encontrou-se com eles na Sala Clementina no dia conclusivo, proferindo o seguinte discurso.

Vossa Excelência D. Zani
Excelências
Senhoras e Senhores
Caríssimos irmãos e irmãs
bom dia e bem-vindos!

Estou muito feliz com este encontro, que exprime a abertura da Biblioteca Apostólica do Vaticano ao mundo. Uma abertura que pedi expressamente a D. Zani quando o chamei para este serviço; disse-lhe: “Vai e abre!”. Saúdo os gestores e benfeitores, que contribuem generosamente para as necessidades desta Instituição. E saúdo com gratidão os representantes de vinte e três Bibliotecas de renome do mundo inteiro, que participaram no encontro Conservata et perlecta aliis tradere. Bibliotecas em diálogo. A Biblioteca do Vaticano quis entrar em diálogo com Instituições amigas e afins, sobre alguns pontos fundamentais, lançando mesas redondas que espero possam continuar no sinal do enriquecimento recíproco.

Este diálogo, conduzido em termos concretos sobre temas bem definidos, ajudará todos a desenvolver melhor o potencial educativo e cultural das vossas Bibliotecas nos novos tempos que hoje vivemos. Com efeito, elas são chamadas a transmitir o legado do passado, segundo modalidades significativas para as novas gerações, que vivem mergulhadas numa cultura líquida e, portanto, precisam de ambientes sólidos, formativos, hospitaleiros e inclusivos para poder elaborar novas sínteses, capazes de valorizar o presente e olhar para o futuro com esperança. A vossa missão é realmente entusiasmante!

A tal propósito, gostaria de vos propor, como figura de referência, o Papa Pio xi , Achille Ratti, a quem alguns estudiosos chamam “o Papa bibliotecário”, mas que era também um alpinista. Com efeito, primeiro dirigiu a veneranda Biblioteca Ambrosiana de Milão e, depois, a Biblioteca Apostólica do Vaticano. Homem ativo, concreto e curioso acerca dos campos da ciência e dos meios de comunicação de massa, promoveu a importância das bibliotecas num período histórico extremamente difícil, entre as duas guerras mundiais. Enquanto a cultura europeia se degenerava em ideologias opostas, o Papa dotou a Biblioteca do Vaticano de novos espaços; favoreceu catalogações sistemáticas; abriu uma escola prática para bibliotecários. Protegida por ele, a Biblioteca tornou-se lugar seguro para muitos estudiosos, até para os perseguidos pelos regimes totalitários, aos quais o Papa sempre se opôs firmemente. Era uma época de regimes totalitários!

Pio xi faz-nos refletir pela criatividade, coragem e consistência da obra que realizou. Efetivamente, hoje enfrentamos desafios culturais e sociais igualmente decisivos, que devem ser superados com a necessária atualização.

Com efeito, a tecnologia alterou consideravelmente o trabalho dos bibliotecários, tornando-o mais diversificado e rápido. Os meios de comunicação e os recursos de informação abriram caminhos há poucos anos impensáveis. Multiplicaram-se os sistemas de estudo, catalogação e utilização dos recursos das bibliotecas. Tudo isto traz muitos benefícios, mas também certos riscos: os grandes depósitos de dados são minas muito ricas, mas dificilmente controláveis na sua qualidade.

Os elevados custos de gestão das coletâneas em papel, especialmente as antigas, fazem com que apenas alguns países do mundo possam oferecer certos serviços de consulta e investigação. Assim, as nações mais vulneráveis estão expostas não apenas à pobreza material, mas também à intelectual e cultural. O risco mais grave é o de que a guerra mundial em pedaços, que hoje vivemos, atrase o progresso de que vós próprios sois testemunhas; o risco de que armas muito caras roubem à cultura os meios necessários para se propagar; que os conflitos impeçam os estudantes de aprender e investigar, destruindo escolas, universidades e projetos educativos. A guerra destrói tudo!

Assim, muitas instituições culturais encontram-se indefesas perante a violência das guerras e da depredação. Quantas vezes já aconteceu no passado! Esforcemo-nos a fim de que não volte a acontecer: ao conflito de civilizações, ao colonialismo ideológico e ao anulamento da memória, respondamos com o cuidado da cultura. Seria grave se, além das muitas barreiras entre os Estados, fossem também erguidos muros virtuais. A este respeito, vós bibliotecários tendes um papel importante a desempenhar, não apenas na defesa do legado histórico, mas também na promoção do saber. Encorajo-vos a continuar a trabalhar para que as vossas instituições sejam lugares de paz, oásis de encontro e de debate livre.

Para apoiar este compromisso, gostaria de vos confiar quatro critérios que propus na Exortação apostólica Evangelii gaudium (cf. nn. 222-237).

Primeiro critério: que o tempo seja superior ao espaço. Possuís imensos depósitos de conhecimento: que eles possam tornar-se lugares onde se dê tempo à reflexão, abrindo-se à dimensão espiritual e transcendente. E que assim possais favorecer estudos a longo prazo, sem a obsessão dos resultados imediatos, promovendo no silêncio e na meditação o crescimento de um renovado humanismo.

Segundo critério: a unidade prevaleça sobre o conflito. Inevitavelmente, a investigação académica suscita momentos de controvérsia, que devem ser conduzidos no contexto de um debate sério, para não chegar à prevaricação. As bibliotecas devem estar abertas a todos os campos do saber, dando testemunho de uma comunhão de objetivos entre várias perspetivas.

Terceiro critério: a realidade seja mais importante do que a ideia. É bom que a concretização das opções e a atenção à realidade cresçam em estreito contacto com a abordagem crítica e especulativa, para evitar qualquer falsa oposição entre pensamento e experiência, entre dados e princípios, entre praxe e teoria. Existe um primado da realidade que a reflexão deve sempre honrar se quiser procurar sinceramente a verdade.

E quarto critério: que o todo seja superior à parte. Somos chamados a harmonizar a tensão entre local e global, lembrando que ninguém é um indivíduo isolado, mas cada indivíduo é uma pessoa que vive de vínculos e redes sociais, nos quais deve participar com responsabilidade.

Repito os quatro critérios: o tempo é superior ao espaço; a unidade deve prevalecer sobre o conflito; a realidade é superior à ideia; o todo é superior à parte. Não esqueçamos estes quatro critérios!

Caríssimos, não tenhais medo da complexidade do mundo em que somos chamados a trabalhar! Quanto compartilhastes possa ajudar a fazer crescer, nas vossas Bibliotecas, os sábios “escribas” louvados pelo Senhor, que sabem tirar do seu tesouro coisas novas e velhas, para o bem de todos (cf. Mt 13, 52). Agora, em silêncio, vou conceder a bênção a todos vós. E peço-vos, por favor, que oreis por mim. E não percais o sentido de humor. Obrigado!