Em diálogo com D. Kulbokas sobre a difícil realidade diária da população ucraniana

O núncio em Kyiv: número de mortos aumenta cada vez mais

 O núncio em Kyiv: número  de mortos aumenta cada vez mais  POR-047
21 novembro 2024

Depois de mil dias do início do conflito na Ucrânia, o núncio apostólico em Kyiv, D. Visvaldas Kulbokas contou aos meios de comunicação social do Vaticano, que Igreja não cessa de incutir esperança na população que sofre devido à agressão militar russa. O diálogo teve lugar na véspera de um ataque maciço de mísseis russos no território ucraniano, com danos causados às infraestruturas e mais vítimas civis.

Para ajudar as pessoas a cultivar a esperança, é necessário aliviar a sua dor, acompanhando-as a fim de que deem sentido a esta experiência. Como cumpriu a Igreja na Ucrânia esta tarefa durante os mil dias de guerra?

Penso não só nas pessoas que vivem nos territórios governados pela Ucrânia, mas também naquelas que vivem fora de tais territórios e, sobretudo, nos prisioneiros. Ajudar estas pessoas é muito difícil, porque só resta a oração, é a única força. Mas tenho muita confiança, pois estou consciente de que a oração pode fazer milagres. Os pastores estão ao lado do seu povo e este é o dom da Igreja católica e também de outras Igrejas e comunidades de fé. Vi isto, por exemplo, em Kherson, onde ouvi histórias de sacerdotes que eram praticamente os únicos pontos de referência para as pessoas e, por isso, as pessoas estão muito gratas ao clero. É muito importante também a ação dos capelães militares, pois muitas vezes os soldados não sabem se estarão vivos ou não no dia seguinte e, em tal caso, a questão do sentido da vida é ainda mais urgente. Ouvi várias histórias de voluntários que levam medicamentos aos soldados e que muitas vezes ouvem os soldados dizer: “Para mim, és como Jesus, pois vieste de tão longe para me trazer medicamentos”. No ano de 2024 houve mais mortes do que em 2023. Portanto, continua a aumentar também o sofrimento, e por isso é muito importante dar um sentido, um sentido cristão perante tanta insegurança e medo.

Que sentido dão as pessoas na Ucrânia aos dias que passam desde o início da invasão russa?

A guerra já dura há muito tempo e há um sentimento de ceticismo. Desconfiança porque o mundo tem organismos que se revelam estruturas inadequadas, incapazes de resolver qualquer problema. No respeitante aos prisioneiros, os seus familiares recordam-me sempre: “Mas que efeito têm as Convenções de Genebra? Alguém consegue visitar os nossos prisioneiros ou não?”. A situação diz-nos que não, que não é possível aplicar ou fazer aplicar as Convenções. Existe, portanto, um sentimento de desilusão em relação ao modo como a humanidade enfrenta este problema, evidentemente não só aqui na Ucrânia, mas também noutras partes do mundo. Portanto, há um grande sentimento de perplexidade, de cansaço. Mas aqui em Kyiv, estamos esmagados por tantos problemas e muitas vezes nem sequer conseguimos ter a noção dos dias ou os meses que passam. E a pergunta sobre o sentido que se pode dar ao prolongar-se da guerra é muito profunda e também eu me questiono. Pessoalmente, o prolongar-se da guerra torna-me mais capaz de compreender as ilusões a que muitas vezes nos confiamos.

Qual é a situação humanitária no país? Quais são as necessidades mais urgentes neste momento?

Há várias faixas de necessidade. Por exemplo, os ex-prisioneiros ou as crianças que regressam ao país e precisam de famílias ou de estruturas que os recebam. Por isso, uma das questões consiste em verificar que diocese ou eparquia, que congregação religiosa tem possibilidades de acolher estas pessoas. Outro desafio é a coordenação da ajuda humanitária, pois em 2024 a ajuda diminuiu drasticamente

Há aspetos do serviço da Igreja que, na sua opinião, se destacaram particularmente no contexto da guerra?

Sem dúvida, há vários aspetos a ter em consideração. Um deles foi abordado precisamente hoje, com um pastor protestante, recordando como, no contexto da guerra, é importante procurar formas para nos mantermos unidos. Não é possível resolver todas as dificuldades que existem entre as várias denominações e comunidades, mas é muito importante realçar o que nos une. Outro aspeto muito importante é que a Igreja e as Igrejas exercem o ministério da consciência, são a voz da consciência. É um papel difícil, mas este é um dos principais serviços que a Igreja presta, ser voz da consciência, procurando descobrir que palavras usar para fazer apelo às consciências.

Encontrou muitos parentes dos prisioneiros e de pessoas desaparecidas. O que os ajuda a não cair no desespero?

Obviamente, os parentes precisam de muito apoio espiritual. Quando me encontro com eles, digo-lhes: “Quando rezais pelos vossos entes queridos, ou se não sois crentes, quando pensais nos vossos entes queridos transmite-se a oração, ou até o simples pensamento”. Ouvi histórias de ex-prisioneiros de guerra que pensavam em suicidar-se por desespero ou por causa das torturas a que eram submetidos, mas salvavam-se pensando em Deus, porque muitas vezes é a fé que os salva, ou pensando nos entes queridos. Sabemos que a oração ou o pensamento chega, por assim dizer fisicamente, aos familiares e que isto os encoraja. Mas é evidente que há necessidade de acompanhar estes familiares de modo mais estruturado. Diria que ainda não existe um trabalho de acompanhamento destas pessoas suficientemente bem feito, pois são necessários especialistas, psicólogos. Às vezes os familiares dos prisioneiros procuram-me, até só para falar, para desabafar, para eles é importante. Mas é difícil abraçar todos, trata-se de milhares de familiares porque há milhares de prisioneiros. Há iniciativas da Igreja também para preparar os sacerdotes e voluntários da Cáritas para ajudar estas pessoas.

Gostaria de acrescentar que é sempre uma grande alegria ver grupos de pessoas que continuam a vir aqui de vários países: Itália, Polónia, França, Alemanha. Às vezes trazem pouca ajuda, porque são pessoas simples. Mas isto dá realmente alegria! As visitas de grupos de oração ou de voluntários trazem sempre alegria, porque nos fazem acreditar que há coração, que há humanidade, e isto infunde esperança. A guerra é diabólica também porque quer matar a confiança na humanidade. O testemunho dos voluntários e de quem vem aqui cria um contraste, mostrando que há coração, cuidado, preocupação, humanidade. E gostaria de aproveitar esta ocasião para agradecer a todos e a cada um as iniciativas que levam a cabo.

Svitlana Dukhovych