Que a dignidade humana seja a nossa preocupação

Palestinians gather to receive food cooked by a charity kitchen, amid a hunger crisis, as the ...
21 novembro 2024

Os jornais “La Stampa” e “El País” anteciparam no domingo, 17 de novembro, nas bancas, em italiano e espanhol, respetivamente, excertos do livro que o Papa Francisco publicou por ocasião do Jubileu 2025. O volume “A esperança nunca desilude. Peregrinos para um mundo melhor”, editado por Hernán Reyes Alcaide (Ed. Piemme, 176 páginas), foi lançado na terça-feira 19, em Itália, Espanha e América Latina, e a seguir noutros países. O Pontífice reflete sobre a família e a educação, a situação social, política e económica do planeta, a geopolítica e as migrações, a crise climática, as novas tecnologias e a paz.

Reafirmo aqui que «é absolutamente necessário enfrentar, nos países de origem, as causas que provocam a migração» (Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado 2017). É necessário que os programas implementados para esse fim garantam que, nas áreas afetadas pela instabilidade e pelas injustiças mais graves, seja dado espaço para um desenvolvimento autêntico que promova o bem de todas as populações, especialmente das crianças, esperança da humanidade. Se quisermos resolver um problema que afeta todos nós, devemos fazê-lo por meio da integração dos países de origem, de trânsito, de destino e de retorno dos migrantes. Diante desse desafio, nenhum país pode ser deixado sozinho e ninguém pode pensar em enfrentar a questão isoladamente por meio de leis mais restritivas e repressivas, às vezes aprovadas sob a pressão do medo ou em busca de vantagens eleitorais. Pelo contrário, assim como vemos que há uma globalização da indiferença, devemos responder com a globalização da caridade e da cooperação, para que as condições dos emigrantes sejam humanizadas.

Pensemos nos exemplos recentes que vimos na Europa. A ferida ainda aberta da guerra na Ucrânia levou milhares de pessoas a abandonarem as próprias casas, sobretudo durante os primeiros meses do conflito. Mas também testemunhamos o acolhimento sem restrições de muitos países de fronteira, como no caso da Polónia. Algo semelhante aconteceu no Médio Oriente, onde as portas abertas de nações como a Jordânia ou o Líbano continuam a ser a salvação para milhões de pessoas em fuga dos conflitos na região: penso especialmente em quem deixa Gaza no meio da fome que afetou os irmãos palestinos diante da dificuldade de levar alimentos e ajuda ao seu território. De acordo com alguns especialistas, o que está a acontecer em Gaza tem as características de um genocídio. Deveria ser investigado com atenção para determinar se se enquadra na definição técnica formulada por juristas e órgãos internacionais. Devemos envolver os países de origem dos maiores fluxos migratórios num novo ciclo virtuoso de crescimento económico e de paz que inclua todo o planeta. Para que a migração seja uma decisão verdadeiramente livre, é necessário fazer o melhor para garantir a todos uma participação igualitária ao bem comum, o respeito dos direitos fundamentais e o acesso ao desenvolvimento humano integral. Somente se essa plataforma básica for garantida em todas as nações do mundo, poderemos dizer que quem migra o faz livremente e poderemos pensar numa solução verdadeiramente global para o problema. Penso sobretudo nos jovens, que, emigrando, muitas vezes causam uma dupla fratura mas suas comunidades de origem: uma porque perdem os elementos mais prósperos e proativos, e outra porque as famílias se separam.

Para alcançar esse cenário, no entanto, precisamos dar o passo preliminar fundamental que consiste em acabar com as condições desiguais de comércio entre os diferentes países do mundo. Nos vínculos entre muitos deles, estabeleceu-se uma certa ficção que mostra a aparência de um suposto intercâmbio comercial, mas que, na verdade, consiste apenas numa transação entre filiais que saqueiam os territórios dos países pobres e enviam os seus produtos e as suas receitas para as empresas-mãe nos países desenvolvidos. Os setores relacionados com a exploração de recursos naturais subterrâneos, por exemplo, vêm-me à mente. São as veias abertas daqueles territórios (Eduardo Galeano, «As veias abertas da América Latina», Sur, 2021).

Quando ouvimos este ou aquele líder lamentar-se dos fluxos migratórios da África para a Europa, quantos desses mesmos dirigentes se questionam sobre o neocolonialismo que ainda existe hoje em muitas nações africanas?

Recordo que, na minha viagem à República Democrática do Congo, em 2023, abordei o problema do saque de algumas nações hoje em dia: «Existe aquele lema que vem do inconsciente de muitas culturas e de muitas pessoas: “a África deve ser explorada”. Isto é terrível! Com efeito, depois da exploração política, desencadeou-se um “colonialismo económico” igualmente escravizador. Assim, largamente saqueado, este país não consegue beneficiar suficientemente dos seus recursos imensos: chegou-se ao paradoxo de os frutos da sua terra o tornarem “estrangeiro” para os próprios habitantes. O veneno da ganância tornou os seus diamantes ensanguentados» (encontro com as autoridades em Kinshasa, 31 de janeiro de 2023).

Já sabemos que a «teoria da recaída favorável» (Discurso no ii Encontro mundial dos movimentos populares, 9 de julho de 2015) não funciona nem dentro da economia de um único país nem no concerto das nações. Devemos apoiar os países periféricos, em muitos casos aqueles de origem das migrações, para neutralizar as práticas neocolonizadoras que buscam perpetuar as assimetrias.

Uma vez que o mundo se colocar em condições de estabelecer acordos para promover o desenvolvimento local daqueles que, de outra forma, acabariam por migrar, é importante que os governantes daqueles países, chamados a exercer a boa política, ajam de forma transparente, honesta, voltada para o futuro e atendendo a todos, especialmente os mais vulneráveis.

Uma vez acolhidos e depois protegidos, os migrantes devem ser promovidos. Ao mesmo tempo em que peço que as portas sejam abertas para eles, também exorto a que o seu desenvolvimento integral seja promovido, que lhes seja dada a oportunidade de se realizarem como pessoas em todas as dimensões que compõem a humanidade desejada pelo Criador.

Penso, em particular, nos passos significativos que devem ser dados para promover a integração sociolaboral dos migrantes e dos refugiados, nas oportunidades de trabalho que também devem ser garantidas aos solicitantes de asilo de diferentes tipos e, paralelamente, numa oferta consistente de cursos de formação linguística e de cidadania ativa, bem como de informações adequadas no seu próprio idioma. Na Itália, temos o exemplo de um jovem sacerdote, Mattia Ferrari, que não apenas se envolve em ações de resgate no mar, mas também garante, com o seu grupo, uma integração sustentável e suportável no local de destino.

Por outro lado, uma migração bem administrada poderia ajudar a enfrentar a grave crise causada pela desnacionalização em muitos países, especialmente europeus. É um problema muito sério e as pessoas que chegam de outras nações podem contribuir para o resolver se forem totalmente integradas e deixarem de ser consideradas cidadãos de “segunda classe”.

A integração do migrante que chega é de suma importância. Corremos o risco de que o que alguns veem como uma salvação no presente se torne uma desgraça para o futuro. Serão as próximas gerações que nos agradecerão se tivermos sido capazes de criar as condições para uma integração indispensável e, caso contrário, nos culparão se tivermos apenas incentivado uma assimilação estéril. Refiro-me a uma integração que é comparável em características ao poliedro, ou seja, onde cada pessoa mantém as suas próprias características; é bem diferente da assimilação, que desconsidera as diferenças e se apega rigidamente a seus próprios paradigmas.

O rosto esperançoso de um avô com seu neto. Os jovens que estão a agir hoje em todo o mundo, mostrando-nos o caminho, amanhã sentar-se-ão para transmitir esse amor pela Terra à próxima geração. Nós, que hoje já temos mais do que alguns cabelos brancos, falhamos na nossa administração da criação, e é por isso que apreciamos o espírito de iniciativa das novas gerações, que não querem repetir os nossos erros e se esforçam por deixar a casa comum melhor de como a receberam.

Tenho acompanhado de perto as mobilizações maciças de estudantes em várias cidades e conheço algumas das ações com as quais eles lutam por um mundo mais justo e ambientalmente mais consciente. Estão a agir com preocupação, entusiasmo e, acima de tudo, com sentido de responsabilidade diante da urgente mudança de rumo que nos é imposta pelos problemas decorrentes da atual crise ética e socioambiental. O tempo está a esgotar-se, não nos resta muito para salvar o planeta, e eles vão, saem e se posicionam. E não fazem isso apenas por eles mesmos, fazem-no por nós e por quem vier depois.

Há vários exemplos de como esse diálogo intergeracional pode resultar numa aliança aplicada ao cuidado da casa comum. Penso em alguns projetos que se preocupam em transmitir o património de conhecimento e os valores da produção alimentar local que os nossos avós possuíam, a fim de os aplicar com a ajuda dos meios que temos hoje para progredir na defesa e promoção da biodiversidade alimentar. São movidos pelo desejo de voltar à terra para a cultivar, sem a explorar, usando técnicas e métodos totalmente ecológicos.

Num mundo cada vez mais frenético e “usa e deita fora”, essas iniciativas ajudam as pessoas a não perderem a conexão com os alimentos e as tradições locais associadas a eles. São contra-tendência, mas não necessariamente regressivas; ao contrário, têm como objetivo recuperar a relação entre os alimentos e os laços sociais. Na Itália, Carlo Petrini e o seu movimento em prol do slow food fizeram grandes progressos nessa direção. Além dos benefícios que o mundo pode colher dessa nova aliança em termos de cuidados com o planeta, não há dúvida de que um encontro mais assíduo entre jovens e idosos reduzirá a possibilidade que aconteçam de novo as tragédias bélicas e humanitárias que marcaram o século passado.

Quem não conhece a própria história está condenado a repeti-la. Ninguém melhor do que os nossos idosos nos pode dar um testemunho vivo de certos eventos que não queremos que voltem a acontecer no nosso planeta. Aquela Europa, que há quase três anos tem sido o epicentro desta Terceira Guerra Mundial aos pedaços que estamos a viver, é o continente que no século passado passou trinta anos imerso em guerras fratricidas e depois experimentou dolorosas separações de povos irmãos enquanto o Muro de Berlim não caiu. Não pode ser uma coincidência que esses novos ventos de guerra soprem no Velho Mundo quando as filas de testemunhas diretas da barbárie do totalitarismo estão cada vez mais reduzidas ou, pior ainda, quando estão marginalizadas, como peças de museu, incapazes de dar os seus preciosos testemunhos — que muitos carregam até na própria pele — para alguns dos debates que marcam a agenda política de hoje, assim como faziam há pouco mais de cem anos.

A esperança sempre tem um rosto humano. Este será o primeiro Jubileu marcado pelo advento de novas tecnologias e terá lugar no meio de uma emergência climática como a que estamos a viver atualmente. Todos os dias vemos como a casa comum nos pede para dizer basta ao nosso estilo de vida que força o planeta além dos seus limites e causa a erosão do solo, o desaparecimento dos campos, a expansão dos desertos, a acidificação dos mares e a intensificação das tempestades e de outros fenómenos climáticos intensos. É o grito da Terra que nos desafia. Nas Escrituras, durante o Jubileu, o povo de Deus era convidado a descansar do seu trabalho habitual, para permitir que a Terra se regenerasse e o mundo se reorganizasse por meio do declínio do consumo habitual. Lembremos as palavras de Deus a Moisés no Monte Sinai: «Este será um ano de jubileu, quando cada um voltará para a propriedade da sua família e para o seu próprio clã. O quinquagésimo ano será jubileu; não semeeis nem ceifeis o que cresce por si mesmo nem colhais das vinhas não podadas. É jubileu e será santo para vós; comei apenas o que a terra produzir» (Lv 25, 10-12).

Somos chamados a adotar estilos de vida justos e sustentáveis que deem à Terra o descanso que merece, bem como meios de subsistência suficientes para todos que não destruam os ecossistemas que nos sustentam. Até antes da pandemia, considerávamos necessário «refletir sobre os nossos estilos de vida e como as nossas decisões diárias em termos de comida, consumo, deslocação, utilização da água, da energia e de muitos bens materiais são muitas vezes impensadas e prejudiciais» (Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, 1 de setembro de 2019). Acrescentamos agora a necessidade de uma reflexão que também inclua o futuro das novas tecnologias e quais decisões tomaremos, como humanidade, para que não sejam incompatíveis com um mundo de fraternidade e de esperança.

Somos chamados a sair da nossa zona de conforto e a apresentar soluções e alternativas criativas para que o planeta continue habitável e a nossa existência na Terra não corra perigo. Novos problemas exigem novas soluções. Devemos meditar sobre os dilemas éticos apresentados pelo uso omnipresente da tecnologia, apelando para o conhecimento integrado a fim de evitar que o paradigma tecnocrático continue a reinar.

Que a dignidade de cada homem e de cada mulher seja a nossa preocupação central no momento de construir um futuro do qual ninguém seja excluído. Não se trata de garantir apenas a continuidade da espécie humana num planeta cada vez mais ameaçado, mas de assegurar que essa vida seja respeitada em todos os momentos. E se diante da questão ambiental não conseguimos reagir a tempo, podemos fazê-lo diante do que é percebido como uma das transformações mais profundas da história recente da humanidade, a penetração da ia em todas as áreas de nossa vida quotidiana.

Por isso estamos chamado a ser peregrinos de esperança. Gosto da imagem do peregrino, «aquele que se descentraliza e, portanto, pode transcender. Sai de si mesmo, abre-se para um novo horizonte e, quando volta para casa, já não é o mesmo, nem sequer a sua casa será a mesma» (Ritorniamo a sognare, Piemme, 2020). O caminho do peregrino, além disso, não é um evento individual, mas comunitário, marca a impressão de um dinamismo crescente que tende sempre para a cruz, que nos oferece sempre a certeza da presença e a segurança da esperança. Colocar-se a caminho «é típico de quem vai em busca do sentido da vida» (Bula do Jubileu 2025).

Lembrai-vos do que vos disse no início: a esperança é nossa âncora e a nossa vela. Deixemo-nos guiar por ela para sairmos em peregrinação rumo à construção daquele mundo mais fraterno com o qual sonhamos, no qual a dignidade do ser humano prevaleça sobre qualquer divisão e esteja em harmonia com a mãe Terra.