Quando prevalece a vontade de paz

 Quando prevalece a vontade de paz  POR-048
28 novembro 2024

Aresolução da longa disputa sobre o Canal de Beagle e o Tratado de paz e amizade entre a Argentina e o Chile, 40 anos depois, continuam a ser uma pedra angular da diplomacia. Um exemplo vivo, particularmente significativo nos dias de hoje, de como se podem evitar derramamentos de sangue inúteis, escolhendo preventivamente sentar-se à mesa das negociações. O Tratado, assinado a 29 de novembro de 1984 no Vaticano, arquivou uma disputa de uma década entre a Argentina e o Chile com o “reconhecimento definitivo e inalterável das respetivas esferas de soberania” ao longo do Canal de Beagle, um corredor de 240 km essencial para ligar o Atlântico e o Pacífico no extremo sul do continente americano.

A conjuntura histórico-política do final da década de 70, com os dois países liderados por regimes militares, levou a Argentina e o Chile à beira de um conflito armado. Em 1977, Buenos Aires rejeitou o veredito de uma arbitragem internacional, favorável às pretensões chilenas, e chegou ao ponto de lançar a “operação Soberania”, com um ataque já programado para 22 de dezembro de 1978 à Ilha Nueva, na foz oriental do Canal de Beagle. A retórica de Videla e Pinochet, os dois generais no poder de um lado ao outro da Cordilheira, fez soprar gelados ventos de guerra.

A evitar estes obscuros presságios, foi a intervenção da Santa Sé, que optou por pôr em campo toda a sua capacidade diplomática: Poucas semanas depois de ter subido ao trono petrino, o Papa João Paulo ii lançou um apelo aos presidentes da Argentina e do Chile «com a viva esperança de ver superada a controvérsia que divide os vossos países e que tanto angustia o meu coração». A Santa Sé, ao contrário de outros atores internacionais, foi considerada um terceiro mediador fiável pelas duas partes e o general Videla aceitou a proposta de mediação, pondo um travão aos propósitos bélicos.

A 26 de dezembro de 1978, chegou a Buenos Aires o cardeal emiliano Antonio Samoré, diplomata e perito na América Latina, escolhido pelo Papa para a mediação. Samoré encontrou-se imediatamente com Videla e, nos dias seguintes, deslocou-se entre Santiago do Chile e Buenos Aires para uma série de encontros com os dois presidentes. A acompanhar a sua ação diplomática estavam os núncios apostólicos no Chile e na Argentina, Angelo Sodano e Pio Laghi. Em apenas duas semanas, os ministros dos Negócios estrangeiros do Chile e da Argentina assinaram o Acordo de Montevideu, solicitando formalmente a mediação da Santa Sé e comprometendo-se a renunciar ao uso da força.

Nos anos seguintes, os progressos nas negociações foram lentos, interrompidos também pela guerra das Malvinas-Falkand, em 1982, entre a Argentina e o Reino Unido. Mas a “teia diplomática” do Vaticano não sofreu interrupções: na Casina Pio iv , os mediadores pontifícios encontraram-se várias vezes com as delegações, primeiro separadamente e depois em conjunto. E Samoré foi várias vezes à audiência com o Papa para o atualizar sobre a mediação, mesmo durante a hospitalização de João Paulo ii na Policlinica Gemelli, em julho de 1981.

A queda do regime militar argentino em 1983 — em simultâneo com o desejo de Pinochet de não cair no isolamento internacional — amadureceu o tempo para a assinatura do Tratado. Um passo favorecido também pelo apoio do povo argentino, que em larga escala aceitou os termos do acordo no referendo promovido pelo governo de Raúl Alfonsín alguns dias antes da assinatura.

O Tratado de paz e amizade foi assinado a 29 de novembro de 1984 no Vaticano, na presença do secretário de Estado Agostino Casaroli. O governo argentino, de acordo com o Tratado, reconheceu a soberania chilena sobre as ilhas Picton, Nueva e Lennox, enquanto Buenos Aires foi compensada com alguns reconhecimentos relativos à extensão do mar territorial.

Na cerimónia de assinatura, Casaroli elogiou o «aspeto exemplar e reconfortante» deste entendimento ligado à «vitória do espírito e da vontade de paz». Também o Papa João Paulo ii recebeu as delegações no Vaticano no dia seguinte, expressando “profunda alegria” por este acordo.

O cardeal Samoré, falecido em fevereiro de 1983, não pôde ver a paz selada graças ao seu paciente trabalho diplomático. Em sua homenagem, a segunda passagem mais importante entre o Chile e a Argentina foi rebatizada como Passagem internacional Cardeal Samoré (antiga Passagem de Puyehue). Desde 1984, a Argentina e o Chile cultivam uma cooperação construtiva e os dois países, separados por uma das fronteiras mais longas do mundo, podem orgulhar-se de nunca terem travado uma guerra.

Valerio Palombaro