· Cidade do Vaticano ·

Reflexões litúrgico-pastorais para a solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora

Contemplar Maria
ícone de santidade

 Contemplar Maria ícone de santidade  POR-049
05 dezembro 2024

«Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobre bendita, gloriosa Senhora nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os Santos, consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus». Assim se conclui, no rito bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, à qual a assembleia responde: «A Ti, Senhor!». É o «fiat», o «faça-se» dito por Maria (Lc 1, 38), a Serva do Senhor, a ecoar também no nosso coração e a brotar dos nossos lábios. É o eco daquele «faça-se» de Deus na primeira página da Escritura Santa a ecoar no coração de Maria e no nosso também. É aquele «Sim» imenso que atravessa as primeiras 452 palavras hebraicas da Escritura Santa (Gn 1, 1-2, 4a), onde não se lê um único «Não». «Tudo, na verdade, foi feito pelo Verbo» (Jo 1, 3), «n’Ele foram criadas todas as coisas» (Cl 1, 16), e o Verbo encarnado, Jesus Cristo, no dizer do Apóstolo, «foi sempre Sim, e nunca não» (2 Cor 1, 19). Aí está a filigrana que faz vibrar a melodia e mostra a verdadeira harmonia da Escritura. Imensa sintonia a ecoar hoje em tantos corações!

2. É bom sabermos e sentirmos que as Igrejas do Oriente e do Ocidente, embora divididas entre si, nos dias 8 e 9 de dezembro (8 no Ocidente e 9 no Oriente), nove meses antes da Festa da sua Natividade (8 de setembro), juntam as suas vozes em maravilhosa harmonia para celebrar a Mãe de Deus no singular privilégio da Conceição Imaculada da sua humanidade. Bem sabemos, além disso, que os Coptas dedicam a Maria o inteiro mês de Kiahq, que coincide mais ou menos com o nosso mês de dezembro, e os Caldeus, os Antioquenos e os Maronitas celebram, também nesta altura do ano, e durante pelo menos quatro Domingos, o tempo da chamada Sûbbarâ ou «Anunciação» ou «Evangelização», Vinda de Deus ao nosso mundo, notícia após notícia, para abrir as nossas trincheiras e fazer nascer em nós um mundo novo, um cântico novo.

3. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta (Gn 3, 9). «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados (Gn 3, 10). A narrativa exemplar de Génesis 3, que hoje lemos, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus» (Gn 3, 12), porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto, e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão.

4. É usual dizer-se que esta conhecida página do Livro do Génesis narra a entrada do mal no coração do homem e no mundo. Mas do que se trata mesmo é da importância da relação do homem com Deus, e diz-nos que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga de Deus. Por isso também, daí para a frente, a Escritura Santa ocupa-se em mostrar que a resposta a dar ao mal não é apenas o bem, mas o santo. Entenda-se: não o homem fechado sobre si, autossuficiente e autorreferencial, mas completamente aberto e voltado para Deus, de quem por amor tudo recebe e se recebe. E completamente voltado para os outros, a quem tudo entrega por amor. Como Maria, a figura deste luminoso Dia.

5. O ícone desta santidade, neste mundo, é Maria, como vemos no cenário da Anunciação hoje apresentado no Evangelho (Lc 1, 26-38). Vale a pena contemplá-la demoradamente, como fazem as Igrejas do Oriente e do Ocidente. Ao contrário do homem do Génesis e desta sociedade em que vivemos, ao contrário de nós, Maria, visitada por Deus, não foge, não se esconde de si mesma, não se esconde de Deus, não esconde Deus na sua vida. Antes se expõe, na sua verdade e simplicidade, ao imenso clarão de Deus. Expõe-se a Deus e expõe Deus, recebendo e aceitando com amor intenso a sua nova Vocação que lhe vem de Deus. Maria vai ser a Mãe, não de um filho, mas do Filho há muito ansiado, esperado e anunciado nas páginas da Escritura Santa Antiga. É o Filho de Deus, totalmente consubstancial a Deus, e é o Filho de Maria, totalmente consubstancial à sua Mãe. Santa Maria, Mãe de Deus.

6. Por isso, «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «não tenhas medo», «o Senhor está contigo» (Lc 1, 28 e 30). Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos», «não tenhais medo» (Mt 28, 5 e 9). E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!

7. Memorial da beleza incandescente desta página do Evangelho é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa São Paulo vi . Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em 1099 pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da atual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est [«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século ii . Numa grafite antiga foi encontrada a gravação xe mapia , abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.

8. Foi o Concílio de Basileia, realizado em 1439, que sugeriu a definição do dogma da Imaculada Conceição, proclamado depois por Pio ix em 08 de dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus. Note-se que o termo «conceção», na linguagem bíblica, indica a totalidade da existência. O velho orante do Salmo 71, olhando retrospetivamente para a sua vida de fidelidade e de amor, exclama extasiado: «Sobre ti me apoiei desde o ventre, desde as entranhas de minha mãe» (Sl 71, 6). Assim também, a existência de Maria está, desde o seu início, sob a proteção de Deus, marcada com o selo de Deus, não estando nunca sob o selo do pecado original, que mostra a existência humana marcada por um projeto alternativo ao de Deus, em que cada existência humana, eu, o meu pai, os filhos que aparecerão sobre a face da terra, queremos ser por nossas próprias forças «como deus, conhecedores do bem e mal» (Gn 3, 5).

9. Esta celebração da Mãe de Deus e nossa Mãe e Padroeira Principal de Portugal é um desafio imenso para o homem «em fuga» deste tempo, que se esconde de si mesmo, que continua a esconder-se de Deus e que pretende esconder Deus, retirando-o da via pública e da vida pública. Atravessamos verdadeiramente a «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin Heidegger, onde «Cada um está sozinho no coração da terra/ atravessado por um raio de sol:/ e é logo noite», como bem escreve o escritor italiano Salvatore Quasimodo. Homem deste tempo às escuras, engessado, triste, exilado, escondido, anestesiado, medicado, volta para a Luz, reentra em tua casa, no teu coração despedaçado. Há de seguramente por lá haver ainda, caída no fundo da alma, uma lágrima dorida e uma mão de Mãe à tua espera!

D. António Couto
Bispo de Lamego