A hora da travessia

 A hora  da travessia  POR-050
12 dezembro 2024

Começou o Advento e já estamos projetados com os olhos e o coração para o próximo Natal, que este ano coincidirá com o início do Ano Santo, do Jubileu de 2025. Na noite da Vigília, dia 24, o Papa Francisco abrirá a Porta Santa, um gesto simbólico que nos recorda que o próprio Jesus se identificou com este objeto que é também um lugar, a porta: «Eu sou a porta: se alguém entrar por Mim, salvar-se-á; entrará e sairá e achará pastagens» (Jo 10, 9). Através da porta entra-se e sai-se. Através da porta, as ovelhas encontram a pastagem, isto é, encontram-se a si mesmas, o sentido da sua existência, aquela meta a que estão destinadas.

A porta é, pois, esta passagem que, paradoxalmente, ao mesmo tempo que nos faz sair de nós, nos permite aceder à nossa parte mais profunda, autêntica. O escritor português Fernando Pessoa intui a força crucial desta passagem: «Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos».

Portanto, o Advento pode ser visto como este “tempo de travessia”. Tempo no qual interrogar-se com honestidade e procurar responder, exatamente como disse o Papa na homilia dirigida aos 21 novos cardeais reunidos no Consistório de sábado passado: «Para onde está indo o meu coração hoje? Em que direção ele está se movendo? Talvez esteja indo na direção errada?» e, citando Santo Agostinho, exortou-os e, a nós, a voltar ao coração: «Volte, volte ao coração [...] porque aí se encontra a imagem de Deus. Na interioridade do homem habita Cristo, na interioridade do homem és renovado segundo a imagem de Deus».

A passagem indica uma renovação e é isto que nos atrai e nos assusta ao mesmo tempo. Fernando Pessoa tem razão, é preciso “ousar”, reunir toda a coragem e atravessar a porta.

Frei Roberto Pasolini, Pregador da Casa Pontifícia, falou de coragem na primeira meditação do Advento, especificando que há uma coragem de discordar e uma coragem humilde de aderir. A primeira é a de Isabel, que diz “não” a um passado sufocante, a roupa habitual de que fala Pessoa, e dá lugar à renovação, escolhendo, contra todos e contra o passado, o nome do filho: «O nome João torna-se uma profecia de renovação: sugere que a história, embora influenciada pelos seus legados, é sempre capaz de se superar e de se abrir a novas possibilidades». É uma grande coragem porque, observa frei Pasolini, nós, homens, temos dificuldade em investir no futuro, envoltos como estamos nas preocupações, seriamente concentrados no “aqui e agora” que apaga a imaginação, de modo que o amanhã nos aparece «como a fotocópia do hoje» e a vida uma «repetição de gestos e de rotinas quotidianas sem grande coração nem esperança».

A segunda é a coragem humilde de Maria que diz “sim” com a palavra, «mas sobretudo com a vida», frisou o Papa na homilia da festa da Imaculada Conceição. Nessa resposta, há a intuição de que o amor é a verdadeira, única, novidade da nossa vida, da história dos homens. Que o amor, recordou o frei Roberto Pasolini, «é sempre uma surpresa». Maria deixou-se «atrair com extrema naturalidade por este destino divino, ativando o recurso mais precioso de que o nosso coração dispõe: a santa admiração». Maria atravessou a primeira porta do Advento, a porta da admiração. De certa forma, é a mais difícil, porque é a primeira, mas por isso mesmo é a porta que permite pôr em marcha todo o processo do Advento, desta abertura a algo, a Alguém que vem, vem ao nosso encontro para nos conduzir para longe de nós e dentro de nós, para aquele coração, aquela interioridade em que Ele já habita e é ali mesmo que nos espera, na parte interior intimo meo, mais íntima de nós próprios.

Andrea Monda