Deixar-se atravessar
Como tivemos oportunidade de ver e de sentir, o Evangelho do Domingo ii do Advento (Lc 3, 1-6) rasga este mundo ao meio de forma clara e impiedosa. Diz o narrador, com a precisão do bisturi, que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, e cita Tibério César, Pilatos, Herodes Antipas, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás, e nós podemos sempre atualizar esta lista, incluindo nela outros nomes e o nosso também. Aí está o golpe a sangrar do bisturi de dois gumes que é a Palavra de Deus (Sl 149, 6; Jz 3, 16-22; Hb 4, 12). Então, a Palavra de Deus passa ao lado deste mundo rico e poderoso, autorreferencial, impiedoso, insensível, indiferente e violento, e, para espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto! Com esse bisturi da Palavra, João Batista pode sempre limpar (Jo 15, 3) o silvado que nos enche os ouvidos, lavar as gorduras que embotam o nosso humano coração e desfazer, com o martelo pneumático, o pedregulho que petrifica o nosso quotidiano.
2. Aí está, então, no Evangelho deste Domingo iii do Advento (Lc 3, 10-18), outra vez João Batista em cena, irrompendo agora com o bisturi da Palavra direto aos ouvidos dos homens deste tempo, ouvidos obstruídos por mato e por silvas, anunciando que o tempo está maduro para limpar a eira e recolher o trigo, que a hora é de frutos novos!
3. «E nós que devemos fazer?», perguntam as multidões (óchloi) (Lc 3, 10), os coletores de impostos (telônai) (Lc 3, 12) e os soldados (strateuómenoi) (Lc 3, 14). Às multidões indeterminadas, João Batista responde: «Quem tem duas túnicas (chitônes), reparta (metadótô: imperativo de metadídômi) com quem não tem nenhuma, e quem tem alimentos, faça da mesma maneira» (Lc 3, 11). Para compreender a resposta de João Batista, convém saber que a túnica era a peça do vestuário usada diretamente em contacto com a pele; usava-se debaixo do manto (himátion), e as pessoas de elevada condição costumavam usar duas túnicas. Os «coletores de impostos» aparecem habitualmente nas traduções como «publicanos». Mas não é o caso. Os publicanos eram os grandes funcionários do fisco romano; os coletores são pequenos agentes ao serviço dos publicanos. É-lhes recomendado por João Batista que não cobrem senão o que está fixado (Lc 3, 13). Aos soldados, João Batista recomenda que não roubem nada a ninguém, e que se contentem com o seu soldo (Lc 3, 14). Neste ponto do diálogo, perguntemos nós também o que devemos fazer. E João Batista, que já, entretanto, abriu passagem por entre o mato e as silvas que obstruem o caminho que vai dos nossos ouvidos até ao nosso coração empedernido, responderá mais ou menos assim: vós não vos canseis de dar, de repartir, de partilhar! E não roubeis, não pratiqueis a injustiça, não façais violência! Amai! Reparemos que todos os frutos de conversão que João Batista menciona e reclama se referem sempre ao nosso comportamento para com o próximo. Fica claro que a conversão, isto é, o nosso voltar-se para Deus, passa sempre pelos nossos gestos para com o próximo, nomeadamente pela partilha para além do impensável. Se tenho duas túnicas, e o meu próximo nenhuma, devo dar-lhe uma. Fica então claro que, nesta nossa sociedade, em que poucos têm muito, muitíssimo, quase tudo, e os outros nada ou quase nada, andamos a brincar com o Evangelho!
4. Mas este verbo «repartir» ou «partilhar» parece-nos terrível. Sem darmos por isso, é muitas vezes a última palavra que queremos ouvir. Na verdade, «partilhar» desvenda-nos e despoja-nos da nossa falsa boa vontade, da nossa generosidade virtual, do nosso vão sentimentalismo religioso, enfim, da nossa hipocrisia. Partilhar não é «depositar» nos outros apenas o supérfluo, as sobras. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Ef 5, 2), por mim (Gl 2, 20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. Mas João Batista, verdadeiro guardião da fronteira entre este mundo velho que passa e o mundo novo que vem, anuncia também uma Presença nova, a d’Aquele-Que-Vem com o Espírito, que dá a vida verdadeira: ei-lo que vem, o noivo, o esposo, aquele de quem eu, diz João Batista, não tenho o direito nem o poder de desatar a correia da sandália!
5. E que significado atribuir à anotação da incompetência (ikanós) de João para «retirar» ou descalçar as sandálias d’Aquele-que-Vem (v. 16)? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se, desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no Novo Testamento: Mt 3, 11; Mc 1, 7; Lc 3, 16; Jo 1, 27; At 13, 25. Num célebre artigo, intitulado «As sandálias do Messias Noivo», Luís Alonso-Schökel levou este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. De acordo com o referido em Sl 60, 10 e 108, 9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. No Livro do Deuteronómio 25, 5-9, o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja «retirada» a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rt 4, 7-10, temos um caso jurídico concreto em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rt 4, 1), o homem em causa «retira» a sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Lc 3, 16 e nos demais dizeres do Novo Testamento que anotámos significa que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência. Portanto, João Batista não pode desatar a sandália daquele que tem o direito à noiva. Só este é que é o noivo, o esposo. João Batista não é o noivo, mas indica-o. Ei-lo que está a chegar! O esposo é Cristo. E a esposa é do esposo. A hora é de alegria, é de amor, é de frutos de alegria e de amor!
6. Portanto, «alegrai-vos sempre no Senhor!», porque «o Senhor está próximo!», grita de alegria o Apóstolo Paulo aos ouvidos dos cristãos de Filipos. Recomenda ainda que deixem de lado as inquietações, e que rezem, e a paz de Deus tomará conta dos seus corações. É a lição de Paulo à comunidade de Filipos, hoje lida em Fl 4, 4-7. E a lição é para nós também.
7. E o Profeta Sofonias (3, 14-18) mantém alta a tonalidade festiva: «Rejubila, filha de Sião!,/ Solta gritos de alegria, Israel!,/ porque o Senhor está no meio de Ti!». Também este intenso convite é para nós, hoje, e deve ser vivido por nós, hoje e aqui, reunidos em assembleia litúrgica festiva, que confessamos uma e outra vez: «Ele está no meio de nós!».
8. Sempre em tom de festa e de alegria, o Salmo Responsorial, hoje um hino de louvor retirado de Isaías 12,3-6, deixa a nossa alma cheia de canções, fazendo-nos repetir (e nós repetimos o que amamos): «Povo do Senhor, exulta e canta de alegria!», ou «Exultai de alegria, porque está no meio de vós o Santo de Israel!». Sim, o povo de Deus, a sua Igreja Una e Santa, vive da música de Deus, cantando com um dos mais belos versos da inteira Escritura: «Minha força e meu canto Yah!» (Sl 118, 14; Is 12, 2; cf. Ex 15, 2). Yah de yhwh , como quando cantamos «Hallelû-yah!» [= Louvai Yah], louvai Deus, o nosso Deus, Aquele que está no meio de nós, hoje e sempre, operando maravilhas.
9. Por tudo isto, e não é pouco, este Domingo iii do Advento é chamado «Domingo gaudete», «Domingo da alegria». Que o seja de verdade nos nossos corações. Deixemo-nos, então, atravessar pela Alegria, e sintamos bem fundo, para além da capa do nosso sentimentalismo religioso, o bisturi da Palavra de Deus e o martelo pneumático do Espírito.
D. António Couto
Bispo de Lamego