· Cidade do Vaticano ·

A concretude da carne como antídoto para os preconceitos ideológicos

 A concretude da carne como antídoto para os preconceitos ideológicos  POR-051
19 dezembro 2024

Na viagem de um só dia à Córsega, ritmada por três encontros e relativos discursos, o Papa Francisco abordou muitos temas, mas sobretudo mergulhou na realidade do povo desta bela ilha no coração do Mediterrâneo. Mergulhou é o verbo certo, porque estas cerca de dez horas passadas em Ajácio foram um longo abraço entre o pastor da Igreja universal e esta única “ovelha”, a Igreja local da Córsega, que o acolheu com um afeto e um calor por vezes arrebatadores.

No primeiro dos três encontros, o Papa quis intervir na sessão conclusiva do Congresso sobre a “Religiosidade Popular no Mediterrâneo” e ofereceu a sua reflexão acerca deste tema que lhe é muito caro. Quis fazê-lo precisamente neste período histórico, nesta “mudança de época” em que, disse, «especialmente nos países europeus, a pergunta sobre Deus parece esmorecer-se e encontramo-nos cada vez mais indiferentes à sua presença e à sua Palavra». No entanto, acrescentou o Papa, «é preciso ser prudente na análise deste cenário, para não nos deixarmos cair em considerações apressadas e juízos ideológicos que, por vezes, ainda hoje, opõem a cultura cristã à cultura laica. Isso é um erro! Pelo contrário, é importante reconhecer uma abertura recíproca entre estes dois horizontes». Citando Bento xvi , o Papa frisou a importância crucial de viver uma “laicidade sadia”, feita precisamente do respeito, do diálogo e da harmonia dos dois horizontes, laico e religioso. A abordagem ideológica acaba por ser excludente e conduz à oposição, penalizando o esforço destinado à busca do bem comum. O raciocínio do Papa tem nuances e repercussões políticas evidentes: num mundo cada vez mais polarizado e conflituoso, o caminho para a paz entre os (e dentro dos) povos passa pela redescoberta da piedade popular: «É precisamente neste cenário que podemos captar a beleza e a importância da piedade popular», a qual «exprimindo a fé com estes gestos simples e linguagens simbólicas enraizadas na cultura do povo, revela a presença de Deus na carne viva da história, reforça a relação com a Igreja e torna-se muitas vezes ocasião de encontro, de intercâmbio cultural e de festa. É curioso: uma piedade que não seja de festa, festiva, não tem um cheiro bom; não é uma piedade que vem do povo, é demasiado destilada...». Na época dos populismos, o problema não é haver demasiado povo, mas sim haver muito pouco. Esta piedade simples, de festa, nunca deve degenerar em superstição, em fechamento sectário, mas abrir-se ao encontro, ao intercâmbio cultural; só assim, prosseguiu o Papa, consegue oferecer e doar aos cristãos uma «cidadania construtiva» e acrescentou que, muitas vezes, «alguns intelectuais, alguns teólogos, não compreendem» isto. O Papa adverte contra uma piedade “destilada”, desencarnada. O que ele indica é um trilho subtil, que o cristão é convidado, no entanto, a percorrer sem medo: viver com coração simples e livre a dimensão popular da própria fé, sem resvalar no “folclore” superficial, no fechamento sob o signo de uma atitude identitária, defensiva, em última análise filha do medo do mundo. Pelo contrário, esta piedade leva a “mergulhar” exatamente naquela carne viva da história em que Deus habita.

A concretude de uma fé autenticamente vivida é o antídoto contra o risco da ideologia, ainda hoje muito presente.

Três brevíssimos momentos de abraço físico, todos “não programados”, mostram como em Francisco o pensamento nunca está separado da ação. Entrando na catedral de Ajácio para o segundo encontro da manhã, parou para abraçar o Padre Gaston Pietri, um sacerdote de 95 anos e 70 de sacerdócio, depois quis saudar calorosamente, uma a uma, todas as crianças do coro que o tinham acolhido cantando uma versão reescrita de Halleluja de Leonard Cohen. Por fim, depois do discurso, o Papa abraçou e acariciou, com uma ternura pungente, um acólito que sofre de perturbações mentais. No final do longo abraço, o jovem separou-se do Papa e, com gestos amplos do braço, abençoou-o. E o Papa agradeceu-lhe pela bênção. Três momentos tão breves quanto intensos, tocantes, que encerraram o abraço da Córsega ao seu pastor, que no final do dia agradeceu ao povo jovem e vital da ilha por o terem feito “sentir-se em casa”.

Um idoso, as crianças, um doente: o Papa sabe que o mundo dos homens é um mundo frágil e indica o cuidado como o caminho mais correto para humanizar a vida. Numa sociedade onde tudo se está a tornar “muscular”, o Papa sabe que os “ossos” desta casa comum que é a humanidade são frágeis, necessitados de cuidados; ao homem embriagado pela sua omnipotência tecnológica, que exerce a arrogância de caraterizar tudo segundo os desempenhos e os resultados, o Papa responde convidando a olhar para a humildade dos pequenos gestos, que se tornam sementes escondidas de beleza e bondade, prontas a germinar.

Andrea Monda