A fé não é ópio dos povos mas encontro

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10 janeiro 2025

A fé não é ópio dos povos mas encontro

Será lançada a 14 de janeiro a autobiografia do Papa Francisco, intitulada “Spera” (Espera) na qual o Pontífice relata a infância em Buenos Aires, o ensinamento recebido da “concentração de humanidade” dos subúrbios urbanos e a memória da histórica viagem ao Iraque, em 2021, no meio de dificuldades logísticas e alarmes de segurança. A “concentração de humanidade” nas villas miserias de Buenos Aires e a “ferida no coração” representada pelo Iraque, visitado em 2021: isso e muito mais nas duas antecipações da autobiografia de Francisco intitulada “Spera”, escrita com Carlo Musso. O livro, editado pela Mondadori, será publicado a 14 de janeiro em mais de cem países do mundo. A 17 de dezembro de 2024, 88º aniversário do Pontífice, alguns jornais italianos já anteciparam trechos do volume.

“Quando alguém me diz que sou um Papa villero, só rezo para que eu seja digno disso”, diz Francisco, evocando o “microcosmo complexo, multiétnico, multirreligioso e multicultural” do barrio Flores de Buenos Aires, onde viveu a infância. Ali “as diferenças eram normais e respeitávamo-nos”, lembra, recordando grupos de amigos católicos, judeus e muçulmanos, sem distinção.

O Papa relembra o encontro com as prostitutas, imagem do “lado mais sombrio e cansativo da existência”, que conheceu desde a infância nas periferias argentinas. Quando se tornou bispo, celebrou a missa para algumas dessas mulheres que, entretanto, tinham mudado de vida. “Fui prostituta em todos os lugares”, confessa uma, chamada Porota, “até nos Estados Unidos. Eu ganhava dinheiro, depois apaixonei-me por um homem mais velho que se tornou o meu amante; quando ele morreu, mudei de vida. Agora tenho uma pensão. Dou banho a homens e mulheres em lares de idosos que não têm ninguém para cuidar deles. Eu não ia muito à missa e fazia tudo com o meu corpo, mas agora quero cuidar dos corpos com os quais ninguém se importa”. “Uma Madalena contemporânea”, diz Francisco. Porota chamou-o pela última vez do hospital, pouco antes de morrer, para receber a Unção dos enfermos e a Comunhão. “Ela era”, escreve, como “os publicanos e as prostitutas” que nos “passam adiante no reino de Deus. Até hoje, no dia da sua morte não me esqueço de rezar por ela”.

Não faltam lembranças dos prisioneiros, que faziam escovas para roupas, e a história da amizade com José de Paola, conhecido como “padre Pepe”, pároco da Virgen de Caacupé, na Villa 21, apoiado com escuta e proximidade pelo futuro Papa num momento de crise vocacional. No subúrbio da cidade, onde “o Estado está ausente há quarenta anos” e onde a toxicomania é “um flagelo que multiplica o desespero”, reitera, “naquelas periferias que para a Igreja devem ser sempre o novo centro, um grupo de leigos e sacerdotes como o padre Pepe vivem e testemunham o Evangelho todos os dias, entre os descartados de uma economia que mata”.

Uma realidade difícil da qual emerge que a religião não é “ópio dos povos”, afirma. Pelo contrário, é “graças à fé e a este compromisso pastoral e civil” que as villas “progrediram de modo impensável, apesar das enormes dificuldades”. E “assim como a fé, todo o serviço é sempre um encontro, e somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres”.

Do drama das periferias urbanas ao Iraque devastado pelo conflito, o olhar de Francisco não muda, mas permanece cheio de atenção à humanidade ferida. Da histórica visita de 5 a 8 de março de 2021 — a primeira de um Pontífice ao país — Francisco recorda “a ferida no coração” representada por Mosul: 2uma das cidades mais antigas do mundo”, disse, “transbordante de história e tradições, que testemunhou a alternância de diferentes civilizações ao longo do tempo e foi emblema da coexistência pacífica entre diferentes culturas no mesmo país, apresentando-se como uma extensão de escombros, após três anos de ocupação pelo Estado islâmico, que a escolheu como a sua fortaleza”. E sobrevoando o território apareceu como “o raio x do ódio”.

Desta viagem Francisco relembra o difícil contexto organizacional, devido à pandemia de Covid-19 e à questão da segurança. “Fui desaconselhado por quase todos... mas”, escreve, “sentia que devia” ir à terra de Abraão, “o ancestral comum de judeus, cristãos e muçulmanos”. Bergoglio não esconde as informações dos serviços secretos britânicos sobre dois atentados em preparação durante a sua visita. Um dos terroristas era uma mulher carregada de explosivos e outro estava dentro de um automóvel. Ambos foram intercetados e mortos pela polícia iraquiana antes de deflagrar o ataque. “Isso também me impressionou muito”, enfatizou. “Mais um fruto envenenado da guerra”.

Mas no meio de todo este ódio o Papa vislumbrou uma luz de esperança no encontro com o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, a 6 de março de há três anos, em Najaf: um encontro que “a Santa Sé preparava havia décadas”, e que aconteceu numa atmosfera fraterna na casa de al-Sistani: “Um gesto que no Oriente é ainda mais eloquente do que as declarações e documentos, pois significa amizade, pertença à mesma família — explica. Fez bem à minha alma e fez-se sentir honrado”. Do Aiatolá, o Pontífice recorda “a exortação comum às grandes potências para que renunciem à linguagem das guerras, dando prioridade à razão, à sabedoria”. E uma frase, que ofereceu “como dom precioso: Os seres humanos ou são irmãos pela religião, ou são iguais pela criação”.

Além do livro “Espera”, a vida do Papa será contada também num filme baseado em Life. La mia storia nella Storia, autobiografia escrita com Fabio Marchese Ragona e publicada em março passado pela editora HaperCollins.