Quando falamos do primeiro milénio do Cristianismo são poucos, dentro e fora da Igreja, os que têm memória disso. Normalmente, mesmo em contexto cristão, as pessoas recorrem a imagens imprecisas centradas nas lutas de poder entre a Igreja e os Imperadores e, num ápice, saltam para as cruzadas, cátaros, Inquisição. A memória histórica e a compreensão teológica estão, de facto, comprometidas. Neste sentido, até mesmo a realização cinematográfica e a produção literária têm ajudado muito a consolidar esta deformação do conhecimento da História da Igreja. A memória é ainda mais curta quando se fala dos primeiros Concílios Ecuménicos. Desde o Concílio do Vaticano ii que os Pontífices têm apelado à colaboração dos artistas para que recuperem e dignifiquem, com os seus diversos talentos, o legado bíblico da Revelação. Mas não apenas aos artistas, porque, insistentemente, sobretudo o Papa Francisco, tem interpelado os teólogos motivando-os a tornarem acessíveis, ao comum dos mortais, os mistérios da fé cristã. Ousou até afirmar, em várias ocasiões, que o conhecimento teológico está pela metade face à total compreensão que deveríamos ter. O motivo que aponta resume-se à quase ausência da participação das mulheres com o seu modo peculiar de pensar a fé.
O contraste é evidente, pois não é um acaso que o ano civil termine com a Solenidade da Incarnação virginal, em Maria de Nazaré, o Natal, e o novo ano seja inaugurado com a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a Theotókos. A razão de ser deste protagonismo atribuído a Maria remonta aos primeiros séculos do Cristianismo, sobretudo ao Concílio realizado em Éfeso, no ano 431. Está aqui, portanto, o ponto nevrálgico da teologia e que requer o contributo do pensamento feminino. Vejamos. Quando o Papa Francisco, na linha dos seus predecessores, pede aos teólogos que repensem o relato da Criação no Livro do Génesis, ele está a dizer que os três primeiros capítulos — desde a acção criadora de Deus até à transgressão no paraíso terrestre — devem ser pensados no seu absoluto realismo, como pré-história teológica revelada. Só desligando esses capítulos do paralelismo com as narrativas mitológicas, das culturas ancestrais, podemos começar a compreender a forma real da História da Igreja. Isto porque o estigma do pecado original, atribuído à primeira mulher, no Éden, impede a compreensão do plano eterno de Deus, que é a Incarnação. Correspondendo a obra da Criação ao plano eterno de Deus para ele próprio incarnar, dar-se a conhecer e relacionar-se com os seres humanos, criados à sua imagem, a leitura da história da Humanidade passa então a ser outra.
É no ventre virginal de Maria de Nazaré o lugar onde se realiza a união hipostática, entre a natureza divina e a natureza humana, em Jesus de Nazaré, o Cristo. O consentimento de Maria, pensada por Deus desde toda a eternidade para a Incarnação, inaugura também uma nova Criação. Este acontecimento irrompe a partir do mundo antigo em estado de declínio. Por isso, Jesus pôde afirmar categoricamente no início do seu ministério na Galileia: «Completou-se o tempo» (Mc 1, 15). A transição da antiga para a nova Criação só a podemos entender a partir da convicção de que a fé cristã, recebida no Baptismo, é uma hipóstase, ou seja, uma substância, segundo a definição que se encontra na Carta aos Hebreus: «A fé é hypostasis das coisas que se esperam; prova das coisas que não se vêem» (11, 1). O Papa Bento xvi aprofundou todas as consequências desta fórmula da fé na sua Carta Encíclica Salvos na esperança. A fé cristã é, portanto, um novo estado da matéria que se recebe no dia do Baptismo e capacita a pessoa a configurar-se à identidade futura da ressurreição, em Deus.
Nos primeiros séculos do Cristianismo não foi fácil chegar à compreensão do mundo novo e da renovada estrutura da matéria, num mundo impregnado do sincretismo filosófico-religioso, dos mitos greco-romanos e das alegorias orientais. Foi necessário que as comunidades cristãs percorressem um caminho árduo até chegar à maturidade do pensamento e da linguagem, face à exigência da fé cristã. As Sagradas Escrituras não são apenas palavras impressas, que qualquer pessoa pode ler ou estudar. Elas contêm uma narrativa dinâmica, espiritual, que se caracteriza por palavras sequenciais, formais e substanciais. Significa isto que, quando um cristão lê sequencialmente as Escrituras, as palavras adquirem forma na substância da fé infusa e realizam substancialmente aquilo que significam. Ou seja, incarnam na alma espiritual. Este processo dinâmico realizou-se em Maria de Nazaré no diálogo com o Anjo Gabriel; há uma troca sequencial de palavras, a aceitação da forma e, por fim, a incarnação da Palavra substancial através da fé infusa. Maria engravidou na hipóstase da fé, inaugurou-se nela uma nova humanidade segundo a afirmação do Apóstolo João no Prólogo do seu Evangelho: «Mas, a quantos o receberam, aos que nele crêm, deu-lhes o poder de se tornarem Filhos de Deus. Estes, não nasceram de laços de sangue, nem de um impulso da carne, nem da vontade de um homem, mas sim de Deus. E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós» (1, 12-14).
Há, portanto, uma diferença abissal entre a compreensão da fé adquirida pelo estudo e a hipóstase da fé infusa, que se recebe no Baptismo, sob a acção do Espírito divino. O grande desafio do Ano Santo é precisamente este: convocar toda a Humanidade na substância da fé infusa, segundo o mandato de Jesus Cristo Ressuscitado (Mt 28, 19-20) e, deste modo, rasgar os horizontes da história face à nova Criação.
Eugénia Tomaz