Bons votos de Natal à Cúria romana
21 de dezembro de 2024
Bendizei, não amaldiçoeis!
Queridos irmãos e irmãs!
Agradeço de todo o coração ao Cardeal Re pelas suas palavras de felicitações; os anos não passam por ele! É bonito isto. Obrigado, Eminência, pelo seu exemplo de disponibilidade e de amor à Igreja.
O Cardeal Re falou da guerra. Ontem, não deixaram entrar o Patriarca [Latino de Jerusalém] em Gaza, como tinham prometido; e também ontem foram bombardeadas crianças. Isto é crueldade. Isto não é guerra. Quero dizê-lo porque mexe com o coração. Obrigado por ter feito esta referência, Eminência. Obrigado!
O título desta alocução é «Bendizei, não amaldiçoeis».
A Cúria Romana é constituída por muitas comunidades de trabalho, mais ou menos complexas ou numerosas. Pensando num tema de reflexão que pudesse beneficiar a vida comunitária na Cúria e nas suas várias estruturas, este ano optei por um aspeto que se enquadra bem com o Mistério da Encarnação, e perceber-se-á rapidamente porquê.
Pensei sobre o facto de falar bem dos outros e não falar mal deles. Trata-se de algo que diz respeito a todos nós, até o Papa — bispos, padres, pessoas consagradas, leigos — e em relação ao qual todos somos iguais. Porquê? Porque toca a nossa humanidade.
Esta atitude — falar bem e não falar mal — é uma expressão de humildade, e a humildade é o traço essencial da Encarnação, particularmente do mistério do Natal do Senhor, para cuja celebração nos preparamos. Uma comunidade eclesial vive em alegre e fraterna harmonia na medida em que os seus membros percorrem o caminho da humildade, renunciando a pensar e falar mal dos outros.
São Paulo, escrevendo à comunidade de Roma, diz: «Bendizei, não amaldiçoeis» (Rm 12, 14). Podemos entender esta exortação também do seguinte modo: “Falai bem e não faleis mal” dos outros, no nosso caso das pessoas que trabalham connosco no escritório, dos superiores, dos colegas, de todos. Falai bem e não faleis mal.
O caminho da humildade: acusar-se a si mesmo
Para praticar este caminho de humildade, proponho hoje a todos nós, como fiz há cerca de vinte anos por ocasião de uma assembleia diocesana em Buenos Aires, o exercício de acusar-se a si mesmo, segundo os ensinamentos dos antigos mestres espirituais, em particular Doroteu de Gaza. Sim, precisamente de Gaza, daquele lugar que agora é sinónimo de morte e destruição, mas que é uma cidade muito antiga, onde floresceram mosteiros e figuras luminosas de santos e mestres nos primeiros séculos do cristianismo. Doroteu é um deles. Na esteira de grandes Padres como Basílio e Evágrio, ele edificou a Igreja com instruções e cartas cheias de seiva evangélica. Hoje, seguindo a sua escola, possamos nós aprender a humildade de nos acusarmos a nós mesmos para não falarmos mal do próximo. Por vezes, nas conversas quotidianas, quando alguém critica, um outro pensa: “E em tua casa, como vão as coisas?” [olha quem fala!]. São as conversas quotidianas.
Numa das suas instruções, Doroteu diz: «Se ao humilde acontece algum mal, logo ele se repreende a si mesmo e julga igualmente que o mereceu. E não se permite censurar os outros nem culpar ninguém. Simplesmente suporta, sem perturbação nem angústia e com toda a tranquilidade. A humildade não se irrita nem irrita ninguém» (Doroteu de Gaza, Oeuvres spirituelles, Paris 1963, n. 30).
E ainda: «Não procures conhecer o mal do teu próximo, e não guardes suspeitas contra ele. E se a nossa malícia as suscitar, procura transformá-las em bons pensamentos» (ibid., n. 187).
Acusar-se a si mesmo é um meio, mas é indispensável: é a atitude de base na qual se pode enraizar a escolha de dizer “não” ao individualismo e “sim” ao espírito comunitário, eclesial. Com efeito, quem se exercita na virtude de se acusar a si mesmo e a pratica frequentemente, liberta-se da suspeita e da desconfiança e abre espaço à ação de Deus, o único que cria a união dos corações. E assim, se cada um progredir neste caminho, pode nascer e crescer uma comunidade em que todos são guardiães uns dos outros e caminham juntos na humildade e na caridade. Quando alguém vê um defeito numa pessoa, pode falar sobre isso somente com três pessoas: Deus, a pessoa em questão e, se não pode falar com esta, com quem na comunidade pode cuidar dela. E nada mais.
Perguntemo-nos, então: o que é que está na base deste estilo espiritual de se acusar a si mesmo? Na base está o abaixamento interior, marcado pelo movimento do Verbo de Deus, a synkatabasis, ou seja, a condescendência. O coração humilde abaixa-se como o de Jesus, que nestes dias contemplamos no presépio.
Perante o drama da humanidade tantas vezes oprimida pelo mal, o que é que Deus faz? Ergue-se na sua justiça e manda do alto a condenação? Assim o esperavam, de certo modo, os profetas até João Batista. Mas Deus é Deus, os seus pensamentos não são os nossos pensamentos, os seus caminhos não são os nossos caminhos (cf. Is 55, 8). A sua santidade é divina e, por isso, parece paradoxal aos nossos olhos. O movimento do Altíssimo é abaixar-se, fazer-se pequeno, como um grão de mostarda, como um rebento humano no ventre de uma mulher. Invisível. Começa assim a tomar sobre si a massa enorme e insuportável do pecado do mundo.
A este movimento de Deus corresponde, no homem, a acusação de si mesmo. Não se trata, antes de mais, de um facto moral: é um facto teológico — como sempre, como em toda a vida cristã — é dom de Deus, obra do Espírito Santo, e da nossa parte cabe-nos con-descender, fazer nosso o movimento de Deus, assumi-lo, acolhê-lo. Foi o que fez a Virgem Maria, que não tinha nada de que se acusar, mas que se deixou envolver plenamente no abaixamento de Deus, no despojamento do Filho, na descida do Espírito Santo. Neste sentido, a humildade poderia chamar-se uma virtude teologal.
Para este nosso abaixamento, ajuda-nos ir ao sacramento da Reconciliação. Ajuda-nos! Cada um pode pensar: quando foi a última vez que me confessei?
En passant, gostaria de mencionar o seguinte. Falei algumas vezes de bisbilhotice. É um mal que destrói a vida social, faz adoecer o coração das pessoas e não leva a nada. O povo di-lo muito bem: “As bisbilhotices não servem para nada”. Cuidado com isso!
Abençoados, abençoamos
Queridos irmãos e irmãs, a Encarnação do Verbo mostra-nos que Deus não nos amaldiçoou, mas abençoou-nos. Mais, revela-nos que em Deus não há maldição, mas só e sempre bênção.
Vêm-me à mente algumas expressões das Cartas de Santa Catarina de Sena, como esta: «Parece que Ele não quer lembrar-se das ofensas que lhe fazemos; e não quer condenar-nos eternamente, mas fazer sempre misericórdia» (Carta n. 15). Devemos falar da misericórdia!
Mas aqui a alusão dirige-se sobretudo a São Paulo, à vertiginosa abertura do hino da Carta aos Efésios:
«Bendito seja o Deus
Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo
que no alto do Céu nos abençoou
com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo» (1, 3).
Aqui está o fundamento do nosso bem-dizer: somos abençoados e, como tal, podemos abençoar.
Todos nós precisamos de ser imersos neste mistério, caso contrário corremos o risco de nos tornarmos ressequidos e, então, seremos como aqueles canais enxutos, secos, que já nem sequer transportam uma gota de água. O trabalho de escritório aqui na Cúria é muitas vezes árido e, com o tempo, traz aridez, se não nos preenchemos com experiências pastorais, momentos de encontro, relações amigas, na gratuidade. Em relação às experiências pastorais, especialmente aos jovens pergunto se têm alguma experiência pastoral: é muito importante. E é sobretudo por isso que é preciso fazer o retiro espiritual todos os anos: para mergulharmos na graça de Deus, para mergulharmos nela totalmente. Deixar-nos “embeber” pelo Espírito Santo, pela água vivificante na qual cada um de nós é querido e amado “desde o princípio”. Então, sim, se o nosso coração está mergulhado nesta bênção originária, somos capazes de abençoar toda a gente, mesmo aqueles que nos parecem antipáticos — é uma realidade; abençoar também os antipáticos — mesmo aqueles que nos trataram mal. Abençoar!
Como sempre, o modelo para quem olhar é a nossa Mãe, a Virgem Maria. Ela é, por excelência, a Bendita. É assim que Isabel a saúda quando a recebe em casa: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!» (Lc 1, 42). E assim nos dirigimos a ela na Ave-Maria. Nela se realizou aquela “bênção espiritual em Cristo”, certamente “nos Céus”, antes do tempo, mas também na terra, na história, quando o tempo foi “repleto” pela presença do Verbo encarnado (cf. Gl 4, 4). É Ele a bênção. É o fruto que abençoa o ventre; o Filho que abençoa a Mãe: «filha do teu Filho», como escreve Dante, «humilde e alta mais do que criatura». E assim Maria, a Bendita, trouxe ao mundo a Bênção que é Jesus. Há um quadro, que tenho no meu escritório, que é precisamente a synkatabasis. Trata-se de Nossa Senhora com as mãos como se fossem uma pequena escada, e o Menino desce por essa escada. O Menino numa mão tem a Lei e com a outra segura-se na mãe para não cair. Esta é a função de Nossa Senhora: levar o Filho. E é isto que Ela faz nos nossos corações.
Artesãos de bênção
Irmãs, irmãos, olhando para Maria, imagem e modelo da Igreja, somos levados a considerar a dimensão eclesial do bem-dizer. E, neste nosso contexto, gostaria de a resumir assim: na Igreja, sinal e instrumento da bênção de Deus para a humanidade, todos somos chamados a ser artesãos de bênção. Não apenas pessoas que abençoam, mas artesãos disso: ensinar, viver como artesãos de bênção.
Podemos imaginar a Igreja como um grande rio que se ramifica em mil e um riachos, torrentes, ribeiros – um pouco como a bacia amazónica – para irrigar o mundo inteiro com a bênção de Deus, que brota do Mistério pascal de Cristo.
A Igreja aparece-nos assim como a realização do projeto que Deus revelou a Abraão desde o primeiro momento em que o chamou da terra dos seus pais. Disse-lhe: «Farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei [...]. E todas as famílias da Terra serão em ti abençoadas» (Gn 12, 2-3). Este desígnio preside a toda a economia da aliança de Deus com o seu povo, que é “eleito” não num sentido excludente, mas, pelo contrário, no sentido que catolicamente diríamos “sacramental”: isto é, fazendo chegar o dom a todos através de uma singularidade exemplar, melhor, testemunhal, martirial.
Assim, no mistério da Encarnação, Deus abençoou cada homem e mulher que vem a este mundo, não com um decreto descido do céu, mas através da carne de Jesus, o Cordeiro bendito que nasceu de Maria bendita (cf. Santo Anselmo, Disc. 52).
Gosto de pensar na Cúria Romana como uma grande oficina na qual há muitas tarefas diferentes, mas todos trabalham para o mesmo objetivo: bem-dizer, espalhar a bênção de Deus e da Mãe Igreja no mundo.
De modo particular, penso no trabalho escondido do “minutante” — estou a ver aqui alguns, que são muito bons. Obrigado! — que no seu gabinete prepara uma carta a fim de que chegue a oração e a bênção do Papa a um doente, uma mãe, um pai, um preso, um idoso, uma criança. Obrigado por isso, porque eu assino essas cartas. E o que é isto? Não é ser artesão de bênção? Os “minutantes” são artesãos de bênção. Contam-me que um santo padre que trabalhou há anos na Secretaria de Estado tinha colado no interior da porta do seu gabinete um papel onde se lia: “O meu trabalho é humilde, humilhado e humilhante”. É uma visão demasiado negativa, mas que tem algo de verdadeiro e de bom. Eu diria que exprime o estilo típico do artesanato da Cúria, a ser entendido, porém, em sentido positivo: a humildade como caminho para o bem-dizer. O caminho de Deus que, em Jesus, se abaixa e vem habitar a nossa condição humana, e deste modo nos abençoa. E isto posso testemunhá-lo: na última Encíclica, sobre o Coração de Jesus, que o Cardeal Re mencionou, quantos trabalharam! Quantos! As minutas iam e voltavam... Tantos, tantos, com pequenas coisas.
Caríssimos, é bom pensar que, através do trabalho quotidiano, especialmente aquele mais escondido, cada um de nós pode contribuir para levar a bênção de Deus ao mundo. Mas nisto temos de ser coerentes: não podemos escrever bênçãos e depois falar mal do nosso irmão ou irmã, estraga a bênção. Eis o meu voto: que o Senhor, nascido para nós na humildade, nos ajude a sermos sempre mulheres e homens bem-dizentes.
Feliz Natal para todos!
Angelus do iv domingo do Advento
22 de dezembro de 2024
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Lamento não estar convosco na Praça, mas estou a melhorar e é preciso tomar precauções.
Hoje o Evangelho apresenta-nos Maria que, depois do anúncio do Anjo, visita Isabel, sua parenta idosa (cf. Lc 1, 39-45), que também está à espera de um filho. Trata-se, portanto, do encontro de duas mulheres que se alegram com o dom extraordinário da maternidade: Maria acaba de conceber Jesus, o Salvador do mundo (cf. Lc 1, 31-35), e Isabel, apesar da sua idade avançada, traz no seu seio João, que preparará o caminho antes do Messias (cf. Lc 1, 13-17).
Ambas têm muitos motivos para se alegrar, e talvez possamos senti-las distantes, protagonistas de milagres tão grandes, que normalmente não acontecem na nossa experiência. Mas a mensagem que o evangelista nos quer transmitir, a poucos dias do Natal, é diferente. De facto, contemplar os sinais prodigiosos da ação salvífica de Deus nunca nos deve fazer sentir distantes d’Ele, mas antes ajudar-nos a reconhecer a sua presença e o seu amor próximo de nós, por exemplo no dom de cada vida, de cada criança e da sua mãe. O dom da vida. Li, no programa “À sua imagem”, uma coisa bonita que estava escrita: Nenhuma criança é um erro. O dom da vida.
Hoje, na Praça, haverá também mães com os seus filhos, e talvez haja também algumas que estejam “à espera de bebé”. Por favor, não fiquemos indiferentes à sua presença, aprendamos a maravilhar-nos com a sua beleza, como fizeram Isabel e Maria, essa beleza das mulheres grávidas. Abençoemos as mães e louvemos a Deus pelo milagre da vida! Gosto — gostava, porque agora não posso — quando ia de autocarro na outra diocese, de ver que, quando uma mulher grávida entrava no autocarro, lhe davam imediatamente um lugar para se sentar: é um gesto de esperança e de respeito!
Irmãos e irmãs, nestes dias gostamos de criar um ambiente festivo com luzes, decorações e músicas de Natal. Lembremo-nos, no entanto, de exprimir sentimentos de alegria sempre que encontrarmos uma mãe com o seu filho nos braços ou no seio. E quando isso nos acontecer, rezemos no nosso coração e digamos também, como Isabel: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!» (Lc 1, 42); cantemos como Maria: «A minha alma glorifica o Senhor» (Lc 1, 46), para que toda a maternidade seja abençoada e, em cada mãe do mundo, seja louvado e exaltado o nome de Deus, que confia aos homens e às mulheres o poder de dar a vida aos filhos.
Daqui a pouco abençoaremos os “Meninos” — eu trouxe o meu: este foi-me oferecido pelo Arcebispo de Santa Fé, foi feito pelos aborígenes equatorianos — os “Meninos” que trouxestes. Podemos então perguntar-nos: agradeço ao Senhor porque se fez homem como nós, para participar em tudo, exceto no pecado, na nossa existência? Louvo o Senhor e bendigo-o por cada criança que nasce? Quando me cruzo com uma mãe grávida, sou bondoso? Mantenho e defendo o valor sagrado da vida dos pequeninos desde a sua conceção no ventre materno?
Que Maria, a Bendita entre todas as mulheres, nos permita sentir admiração e gratidão perante o mistério da vida que nasce.
Abertura da Porta santa
no início do Jubileu ordinário
24 de dezembro de 2024
Um anjo do Senhor, envolto em luz, ilumina a noite e traz aos pastores a boa nova: «Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2, 10-11). Entre o espanto dos pobres e o canto dos anjos, o céu abre-se sobre a terra: Deus fez-se um de nós para que fossemos como Ele, desceu para o meio de nós a fim de nos reerguer e nos reconduzir ao abraço do Pai.
É esta, irmãs e irmãos, a nossa esperança. Deus é o Emanuel, é Deus-connosco. O infinitamente grande se fez pequeno, a luz divina brilhou nas trevas do mundo, a glória do céu apareceu na terra. Como? Na pequenez de uma Criança. E se Deus vem, mesmo quando o nosso coração parece uma pobre manjedoura, então podemos dizer: a esperança não está morta, a esperança está viva e envolve a nossa vida para sempre! A esperança não desilude.
Irmãs e irmãos, com a abertura da Porta Santa iniciamos um novo Jubileu: cada um de nós pode entrar no mistério desse anúncio de graça. Esta é a noite em que a porta da esperança foi escancarada para o mundo; esta é a noite em que Deus diz a cada um: há esperança também para ti! Há esperança para cada um de nós. Mas não esqueçais, irmãs e irmãos, que Deus perdoa tudo, Deus perdoa sempre. Não esqueçais isto, que é uma maneira de compreender a esperança no Senhor.
Para acolher este dom, somos chamados a pôr-nos a caminho com o espanto dos pastores de Belém. O Evangelho diz que eles, tendo recebido o anúncio do anjo, «foram apressadamente» (Lc 2, 16). Esta é a indicação para reencontrar a esperança perdida, para a renovar em nós, para a semear nas desolações do nosso tempo e do nosso mundo: apressadamente. E existem tantas desolações neste tempo! Pensemos nas guerras, nas crianças metralhadas, nas bombas nas escolas e nos hospitais. Sem demorar, sem abrandar o passo, mas deixando-se atrair pela boa nova.
Apressadamente, vamos ver o Senhor que nasceu para nós, com o coração leve e desperto, pronto para o encontro, para podermos então traduzir a esperança nas situações da nossa vida. E esta é a nossa tarefa: traduzir a esperança nas diferentes situações da vida. Porque a esperança cristã não é um final feliz que deve ser aguardado passivamente, não é um happy end de um filme: é a promessa do Senhor a ser acolhida aqui e agora, nesta terra que sofre e geme. Ela pede-nos, portanto, que não nos demoremos, que não nos arrastemos nos hábitos, que não nos detenhamos na mediocridade e na preguiça; pede-nos — como diria Santo Agostinho — que nos indignemos com as coisas que não estão bem e tenhamos a coragem de as mudar; pede-nos que nos façamos peregrinos em busca da verdade, sonhadores que nunca se cansam, mulheres e homens que se deixam inquietar pelo sonho de Deus, que é o sonho de um mundo novo, onde reinem a paz e a justiça.
Aprendamos com o exemplo dos pastores: a esperança que nasce nesta noite não tolera a indolência dos sedentários e a preguiça dos que se acomodaram no seu próprio conforto — e muitos de nós corremos o risco de nos acomodar no próprio conforto — a esperança não admite a falsa prudência dos que não se arriscam por medo de se comprometerem e o calculismo dos que só pensam em si próprios; a esperança é incompatível com a vida tranquila dos que não levantam a voz contra o mal e contra as injustiças cometidas diretamente sobre os mais pobres. Pelo contrário, a esperança cristã, ao mesmo tempo que nos convida a esperar pacientemente que o Reino germine e cresça, exige de nós a audácia de antecipar hoje essa promessa, através da nossa responsabilidade, mas não só, através também da nossa compaixão. E aqui talvez nos faça bem questionar a nossa compaixão: será que tenho compaixão? Sei sofrer com? Pensemos nisso.
Olhando para a forma como muitas vezes nos acomodamos neste mundo, adaptando-nos à sua mentalidade, um grande padre escritor rezava assim no Santo Natal: «Senhor, peço-vos um pouco de tormento, inquietação e remorso. No Natal, gostaria de me encontrar insatisfeito. Contente, mas também insatisfeito. Contente por causa do que fazeis, insatisfeito por causa da minha falta de respostas. Tirai, por favor, a nossa falsa paz e colocai um punhado de espinhos na nossa “manjedoura” que está sempre muito cheia. Ponde nas nossas almas o desejo de algo mais» ( A. Pronzato , La novena di Natale). O desejo de algo mais. Não fiques parado. Não esqueçamos que a água parada é a primeira a se corromper.
A esperança cristã é precisamente o “algo mais” que nos pede para avançarmos “apressadamente”. Realmente, nós, discípulos do Senhor, somos convidados a encontrar n’Ele a nossa maior esperança e a levá-la sem demora, como peregrinos de luz nas trevas do mundo.
Irmãs, irmãos, este é o Jubileu, este é o tempo da esperança! E ele convida-nos a redescobrir a alegria do encontro com o Senhor, chama-nos a uma renovação espiritual e compromete-nos na transformação do mundo, para que este se torne verdadeiramente um tempo jubilar: que seja assim para a nossa mãe Terra, desfigurada pela lógica do lucro; que seja assim para os países mais pobres, sobrecarregados de dívidas injustas; que seja assim para todos aqueles que são prisioneiros de antigas e novas escravidões.
A nós, a todos nós, o dom e o compromisso de levar a esperança onde ela se perdeu: onde a vida está ferida, nas expetativas traídas, nos sonhos desfeitos, nos fracassos que despedaçam o coração; no cansaço de quem já não aguenta mais, na solidão amarga de quem se sente derrotado, no sofrimento que consome a alma; nos dias longos e vazios dos encarcerados, nos aposentos estreitos e frios dos pobres, nos lugares profanados pela guerra e pela violência. Levar esperança nestes lugares, semear esperança nesses locais.
O Jubileu abre-se para que a todos seja dada a esperança, a esperança do Evangelho, a esperança do amor, a esperança do perdão.
Votemos ao presépio, olhemos para o presépio, observemos a ternura de Deus manifestada no rosto do Menino Jesus, perguntemo-nos: «Há no nosso coração esta expetativa? Há no nosso coração esta esperança? [...]. Ao contemplar a bondade de Deus que vence a nossa desconfiança e os nossos medos, contemplemos também a grandeza da esperança que nos aguarda. [...]. Que esta visão da esperança ilumine o nosso caminho quotidiano» ( C. M. Martini , Homilia de Natal, 1980).
Nesta noite, irmã, irmão, é para ti que se abre a “porta santa” do coração de Deus. Jesus, Deus-connosco, nasce para ti, para mim, para nós, para cada homem e mulher. E, sabes, com Ele a alegria floresce, com Ele a vida muda, com Ele a esperança não desilude!
Mensagem «Urbi et Orbi»
25 de dezembro de 2024
Queridas irmãs, queridos irmãos, Feliz Natal!
Nesta noite, renovou-se o mistério que não cessa de nos maravilhar e comover: a Virgem Maria deu à luz Jesus, o Filho de Deus, envolveu-o em panos e recostou-o numa manjedoura. Foi assim que os pastores de Belém, cheios de alegria, o encontraram, enquanto os anjos cantavam: “Glória a Deus e paz aos homens” (cf. Lc 2, 6-14). E paz aos homens!
Este acontecimento, que teve lugar há mais de dois mil anos, renova-se por obra do Espírito Santo, o mesmo Espírito de Amor e de Vida que fecundou o ventre de Maria e da sua carne humana formou Jesus. E assim, hoje, nas tribulações do nosso tempo, se encarna de novo e realmente a Palavra eterna de salvação, que diz a cada homem, a cada mulher, e ao mundo inteiro — é esta a mensagem — amo-te, perdoo-te, volta para mim, a porta do meu coração está aberta para ti!
Irmãs, irmãos, a porta do coração de Deus está sempre aberta: voltemos para Ele! Regressemos ao coração que nos ama e perdoa! Deixemo-nos perdoar por Ele, deixemo-nos reconciliar com Ele! Deus perdoa sempre! Deus perdoa tudo! Deixemo-nos perdoar por Ele!
É este o significado da Porta Santa do Jubileu, que abri ontem à noite aqui em São Pedro: ela representa Jesus, a Porta da salvação aberta para todos. Jesus é a Porta; é a Porta que o Pai misericordioso abriu no meio do mundo, no meio da história, para que todos possamos voltar para Ele. Todos nós somos como ovelhas tresmalhadas e precisamos de um Pastor e de uma Porta para regressar à casa do Pai. Jesus é o Pastor, Jesus é a Porta.
Irmãos e irmãs, não tenhais medo! A Porta está aberta, a porta está escancarada! Não é necessário bater à porta. Ela está aberta! Vinde! Deixemo-nos reconciliar com Deus, e então reconciliar-nos-emos connosco mesmos e poderemos reconciliar-nos uns com os outros, até com os nossos inimigos. A misericórdia de Deus tudo pode, desfaz todos os nós, derruba todos os muros de divisão, a misericórdia de Deus dissolve o ódio e o espírito de vingança. Vinde, Jesus é a Porta da Paz!
Muitas vezes paramos apenas na soleira da porta e não temos a coragem de a atravessar, porque ela nos interpela. Entrar pela Porta exige o sacrifício de dar um passo — pequeno sacrifício; dar um passo para uma coisa tão grande — exige deixar para trás contendas e divisões, para se abandonar nos braços abertos do Menino que é o Príncipe da Paz. Neste Natal, início do Ano jubilar, convido todas as pessoas, todos os povos e nações a terem a coragem de atravessar a Porta, a tornarem-se peregrinos da esperança, a calarem as armas — a calarem as armas! — e a superarem as divisões!
Calem-se as armas na martirizada Ucrânia! Tenha-se a audácia de abrir a porta às negociações e aos gestos de diálogo e de encontro, para alcançar uma paz justa e duradoura.
Calem-se as armas no Médio Oriente! Com os olhos postos no berço de Belém, dirijo o meu pensamento para as comunidades cristãs da Palestina e de Israel e, em particular, à querida comunidade de Gaza, onde a situação humanitária é gravíssima. Haja um cessar-fogo, libertem-se os reféns e ajude-se a população esgotada por causa da fome e da guerra. Sinto-me próximo também da comunidade cristã no Líbano, especialmente a do sul, e da que se encontra na Síria, neste momento tão delicado. Abram-se as portas do diálogo e da paz em toda a região, dilacerada pelo conflito. E quero ainda aqui recordar o povo líbio, encorajando-o a procurar soluções que permitam a reconciliação nacional.
Que o nascimento do Salvador traga um tempo de esperança às famílias de milhares de crianças que estão a morrer devido a uma epidemia de sarampo na República Democrática do Congo, bem como às populações do leste do país e às do Burkina Faso, Mali, Níger e Moçambique. A crise humanitária que os afeta é causada principalmente por conflitos armados e pelo flagelo do terrorismo, e é agravada pelos efeitos devastadores das alterações climáticas, que provocam a perda de vidas humanas e o deslocamento forçado de milhões de pessoas. Penso também nos povos dos países do Corno de África, para os quais imploro os dons da paz, da concórdia e da fraternidade. Que o Filho do Altíssimo sustente os esforços da comunidade internacional para facilitar o acesso da população civil do Sudão à ajuda humanitária e para suscitar novas negociações em vista de um cessar-fogo.
O anúncio do Natal traga conforto aos habitantes de Myanmar, que sofrem imenso, devido aos contínuos confrontos armados, e são obrigados a fugir das próprias casas.
Que o Menino Jesus inspire as autoridades políticas e todas as pessoas de boa vontade do continente americano, para que, na verdade e na justiça, encontrem quanto antes soluções eficientes, para promover a harmonia social, penso especialmente no Haiti, na Venezuela, na Colômbia e na Nicarágua, e para que se trabalhe, sobretudo neste Ano Jubilar, na construção do bem comum e na redescoberta da dignidade de cada pessoa, superando as divisões políticas.
O Jubileu seja uma oportunidade para derrubar todos os muros de separação: os ideológicos, que tantas vezes marcam a vida política, e também os físicos, como a divisão que há cinquenta anos atinge a ilha de Chipre e que dilacerou o seu tecido humano e social. Desejo que seja possível alcançar uma solução compartilhada, uma solução que ponha termo à divisão, respeitando plenamente os direitos e a dignidade de todas as comunidades cipriotas.
Jesus, o Verbo eterno de Deus feito homem, é a Porta escancarada; é a Porta escancarada que somos convidados a atravessar para redescobrir o sentido da existência e a sacralidade de todas as vidas — todas as vidas são sagradas — e para recuperar os valores basilares da família humana. Ele espera-nos na soleira da porta. Espera por cada um de nós, sobretudo pelos mais frágeis: espera as crianças, todas as crianças que sofrem por causa da guerra e da fome; espera os idosos, os nossos antepassados, muitas vezes obrigados a viver em condições de solidão e abandono; espera aqueles que perderam a própria casa ou fogem da sua terra para tentar encontrar um refúgio seguro; espera os que perderam ou não encontram trabalho; espera os prisioneiros que, apesar de tudo, continuam a ser filhos de Deus, sempre a ser filhos de Deus; espera aqueles que são perseguidos por causa da sua fé e são tantos!
Neste dia de festa, não pode faltar a nossa gratidão para com aqueles que, de forma silenciosa e fiel, se dedicam ao bem: estou a pensar nos pais, educadores e professores, que têm a grande responsabilidade de formar as gerações futuras; estou a pensar nos profissionais de saúde, nas forças de segurança, naqueles que se empenham em obras de caridade, especialmente nos missionários espalhados pelo mundo, que levam luz e conforto a tantas pessoas em dificuldade. A todos eles queremos dizer: obrigado, obrigado!
Irmãos e irmãs, que o Jubileu seja uma ocasião para perdoar as dívidas, sobretudo as que oneram os países mais pobres. Cada um é chamado a perdoar as ofensas recebidas, porque o Filho de Deus, que nasceu no frio e na escuridão da noite, nos perdoa tudo. Ele veio para nos curar e perdoar. Peregrinos de esperança, saiamos ao seu encontro! Abramos-lhe as portas do nosso coração. Abramos-lhe as portas do nosso coração, tal como Ele nos escancarou a porta do seu Coração.
Desejo a todos um Feliz e Santo Natal!
Abertura da Porta santa
na prisão romana de Rebibbia
26 de dezembro de 2024
Amadas irmãs e irmãos
bom dia e feliz Natal!
Hoje eu quis abrir de par em par a Porta aqui. Abri a primeira em São Pedro, a segunda é a vossa. É um gesto muito bonito, abrir de par em par: abrir as portas! Mas o mais importante é o que significa: abrir o coração. Corações abertos! E é isto que a fraternidade faz. Os corações fechados, duros, não ajudam a viver. Por isso, a graça de um Jubileu é abrir, abrir de par em par e sobretudo abrir o coração à esperança. A esperança não desilude (cf. Rm 5, 5), nunca! Pensai bem nisto! Eu também penso assim, pois nos momentos negativos pensa-se que tudo acabou, que nada se resolve. Mas a esperança nunca desilude!
Gosto de pensar na esperança como na âncora que está na margem e nós estamos ali com a corda, seguros, porque a nossa esperança é como a âncora em terra firme (cf. Hb 6, 17-20). Não percais a esperança! Esta é a mensagem que vos quero transmitir; a todos, a todos nós. Primeiro a mim. A todos. Não percais a esperança! A esperança nunca desilude, nunca! Às vezes a corda é dura e fere as nossas mãos... mas com a corda, sempre com a corda na mão, olhando para a margem, a âncora leva-nos em frente. Há sempre algo bom, há sempre algo que nos faz ir em frente!
A corda na mão e, segundo, as janelas bem abertas, as portas escancaradas. Sobretudo a porta do coração. Quando o coração está fechado, torna-se duro como uma pedra; esquece-se a ternura. Até nas situações mais difíceis — cada um de nós tem a sua, mais fácil, mais difícil, penso em vós — com o coração sempre aberto; é o coração que nos faz irmãos. Abri de par em par as portas do coração! Cada um sabe como o fazer. Cada um sabe onde a porta está fechada ou meio fechada. Todos sabem!
Digo-vos duas coisas. Primeiro: a corda na mão, com a âncora da esperança! Segundo: escancarai as portas do coração! Abrimos esta, mas é um símbolo da porta do nosso coração.
Desejo-vos um grande Jubileu! Desejo-vos muita paz, muita paz! E todos os dias rezo por vós, realmente! Não é um modo de dizer. Penso em vós e rezo por vós. E vós rezai por mim.
Obrigado!
Palavras improvisadas após a Bênção conclusiva.
Agora não esqueçamos as duas coisas que devemos fazer com as mãos. Primeiro: agarrar-nos à corda da esperança, agarrar-nos à âncora, à corda. Nunca a larguemos. Segundo: abrir de par em par o coração. Corações abertos. Que o Senhor nos ajude em tudo isto. Obrigado!
Palavras improvisadas no final da Santa Missa.
Antes de terminar, desejo feliz ano novo a todos! Que o próximo ano seja melhor do que este. Cada ano deve ser melhor. Além disso, daqui, quero saudar os presos que ficaram nas celas, que não puderam vir. Uma saudação a todos e a cada um de vós!
E não vos esqueçais: agarrar-se à âncora. De mãos dadas, não vos esqueçais. Feliz ano novo a todos. Obrigado!
Angelus da festa de Santo Estêvão protomártir
26 de dezembro de 2024
Queridos irmãos e irmãs, boa festa! Feliz festa para todos!
Hoje, imediatamente a seguir ao Natal, a liturgia celebra Santo Estêvão, o primeiro mártir. A narração do seu apedrejamento encontra-se nos Atos dos Apóstolos (cf. 6, 8-12; 7, 54-60) e no-lo apresenta enquanto, moribundo, reza pelos seus assassinos. E isto faz-nos refletir: de facto, mesmo se à primeira vista Estêvão parece sofrer impotente a violência, na realidade, como homem verdadeiramente livre, continua a amar até os seus assassinos e a oferecer a sua vida por eles, como Jesus (cf. Jo 10, 17-18; Lc 23, 34); oferece a sua vida para que eles se arrependam e, perdoados, recebam o dom da vida eterna.
Deste modo, o diácono Estêvão apresenta-se-nos como testemunha daquele Deus que tem um único e grande desejo: «que todos os homens sejam salvos» (1 Tm 2, 4) — é este o desejo do coração de Deus — que ninguém se perca (cf. Jo 6, 39; 17, 1-26). Estêvão é testemunha daquele Pai — o nosso Pai — que quer o bem e só o bem para cada um dos seus filhos, e sempre; o Pai que não exclui ninguém, o Pai que nunca se cansa de os procurar (cf. Lc 15, 3-7) e de os acolher quando, depois de se terem afastado, voltam a Ele arrependidos (cf. Lc 15, 11-32), e o Pai que não se cansa de perdoar. Lembrai-vos disto: Deus perdoa sempre e Deus perdoa tudo.
Voltemos a Estêvão. Infelizmente, ainda hoje, em várias partes do mundo, há muitos homens e mulheres perseguidos, por vezes até à morte, por causa do Evangelho. O que dissemos de Estêvão aplica-se também a eles. Não se deixam matar por fraqueza, nem para defender uma ideologia, mas para fazer com que todos participem do dom da salvação. E fazem-no sobretudo para o bem dos seus assassinos... e rezam por eles.
O Beato Christian de Chergé deixou-nos um lindo exemplo disto, ao chamar ao seu assassino um “amigo do último minuto”.
Perguntemo-nos, então, cada um de nós: sinto o desejo de que todos conheçam Deus e todos se salvem? Desejo também o bem daqueles que me fazem sofrer? Preocupo-me e rezo por tantos irmãos e irmãs perseguidos por causa da fé?
Maria, Rainha dos Mártires, nos ajude a ser testemunhas corajosas do Evangelho para a salvação do mundo.
Angelus da festa
da Sagrada Família de Nazaré
29 de dezembro de 2024
Queridos irmãos e irmãs, bom domingo!
Hoje celebramos a Sagrada Família de Nazaré. O Evangelho narra que Jesus, quando tinha doze anos, no final da peregrinação anual a Jerusalém, se perdeu de Maria e José, que o encontraram depois no Templo a debater com os doutores (cf. Lc 2, 41-52). O evangelista Lucas revela o estado de espírito de Maria, que pergunta a Jesus: «Filho, porque nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura» (v. 48). E Jesus responde-lhe: «Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar na casa de meu Pai?» (v. 49).
É uma experiência quase habitual de uma família que alterna momentos tranquilos com outos dramáticos. Parece a história de uma crise familiar, uma crise dos nossos dias, de um adolescente difícil e dois pais que não conseguem entendê-lo. Detenhamo-nos a olhar para esta família. Sabeis porque a Família de Nazaré é um modelo? Porque é uma família que dialoga, que se ouve, que fala. O diálogo é um elemento importante para uma família! Uma família que não comunica não pode ser uma família feliz.
É belo quando uma mãe não começa com uma repreensão, mas com uma pergunta. Maria não acusa e não julga, mas procura entender como acolher este Filho tão diferente, através da escuta. Apesar deste esforço, o Evangelho diz que Maria e José «não compreenderam as palavras que lhes disse» (v. 50), mostrando que na família é mais importante ouvir do que entender. Ouvir é dar importância ao outro, reconhecer o seu direito de existir e pensar autonomamente. Os filhos precisam disto. Pensai bem, vós pais, ouvi os filhos, precisam disto!
Um momento privilegiado de diálogo e de escuta em família é o das refeições. É bom estar juntos à mesa e conversar. Isto pode resolver tantos problemas e, acima de tudo, une as gerações: filhos que conversam com os pais, netos que conversam com os avós... Nunca ficar fechados em si mesmos ou, pior ainda, com a cabeça no telemóvel. Isto não é bom... nunca, nunca é bom! Conversar, ouvir-se, este é o diálogo que faz bem e que faz crescer!
A família de Jesus, Maria e José é santa. No entanto, vimos que até os pais de Jesus nem sempre compreendiam. Podemos refletir sobre isto, e não nos surpreendamos se, às vezes, em família, não nos entendemos. Quando nos acontece, perguntemo-nos: ouvimo-nos uns aos outros? Enfrentamos os problemas ouvindo-nos reciprocamente ou fechamo-nos no mutismo, por vezes no ressentimento, no orgulho? Dedicamos um pouco de tempo para dialogar? O que podemos aprender hoje com a Sagrada Família é a escuta recíproca.
Confiemo-nos à Virgem Maria e peçamos o dom da escuta para nossas famílias!
Primeiras Vésperas da Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus
e «Te Deum» de ação de graças
no final do ano
31 de dezembro de 2024
Esta é a hora da ação de graças, e temos a alegria de a viver celebrando Santa Mãe de Deus. Ela, que guarda no seu coração o mistério de Jesus, ensina também cada um de nós a ler os sinais dos tempos à luz desse mistério.
O ano que está a chegar ao fim foi muito atarefado para a cidade de Roma. Os cidadãos, peregrinos, turistas e todos os que se encontravam de passagem experimentaram a típica fase que precede um Jubileu, com a multiplicação de grandes e pequenos estaleiros de obras. Esta tarde é o momento para uma reflexão sapiencial, para considerar que todo este trabalho, para além do valor que tem em si mesmo, teve um significado que corresponde à própria vocação de Roma, a sua vocação universal. À luz da Palavra de Deus que acabámos de ouvir, esta vocação poderia exprimir-se assim: Roma é chamada a acolher todos para que todos se reconheçam filhos de Deus e irmãos uns dos outros.
Por isso, neste momento, queremos elevar a nossa ação de graças ao Senhor porque nos permitiu trabalhar, e trabalhar muito, mas sobretudo porque nos deu a possibilidade de o fazer com este grande sentido, com este amplo horizonte que é a esperança da fraternidade.
O lema do Jubileu, “Peregrinos de esperança”, é rico de significados, consoante as diversas perspetivas possíveis, que constituem outros tantos “caminhos” de peregrinação. E um destes grandes caminhos de esperança por onde caminhar é a fraternidade: é a estrada que propus na Encíclica Fratelli tutti. Sim, a esperança do mundo está na fraternidade! E é bom pensar que, nestes últimos meses, a nossa Cidade se tornou um estaleiro de obras com este propósito, com este amplo sentido: preparar-se para acolher homens e mulheres de todo o mundo, católicos e cristãos de outras confissões, crentes de todas as religiões, buscadores da verdade, da liberdade, da justiça e da paz, todos peregrinos de esperança e fraternidade.
Mas é preciso perguntar-nos: esta perspetiva tem algum fundamento? A esperança de uma humanidade fraterna é apenas um slogan retórico ou tem uma base “rochosa” sobre a qual se pode construir algo estável e duradouro?
Esta resposta é dada pela Santa Mãe de Deus, ao mostrar-nos Jesus. A esperança de um mundo fraterno não é uma ideologia, nem um sistema económico, nem o progresso tecnológico. A esperança de um mundo fraterno é Ele, o Filho encarnado, enviado pelo Pai para que todos nos tornemos o que somos, isto é, filhos do Pai que está nos céus e, portanto, irmãos e irmãs entre nós.
E assim, enquanto admiramos com gratidão os resultados das obras realizadas na cidade — agradecemos o trabalho de tantos e tantos homens e mulheres que o fizeram, agradecemos ao senhor Presidente da Câmara por este trabalho de levar em frente a cidade — tomamos consciência de qual é o estaleiro de obras mais decisivo, o que implica cada um de nós: esse estaleiro de obras é aquele em que, todos os dias, permitirei a Deus que mude em mim o que não é digno de um filho, o que não é humano, e é aquele em que me comprometerei, cada dia, a viver como irmão e irmã do meu próximo.
Que a nossa Santa Mãe nos ajude a caminhar juntos, como peregrinos de esperança, na estrada da fraternidade. Que o Senhor nos abençoe a todos, perdoe os nossos pecados e nos dê força para prosseguir a nossa peregrinação no próximo ano. Obrigado!
Solenidade de Maria
Santíssima Mãe de Deus
e lviii Dia mundial da paz
1 de janeiro
No início de um novo ano que o Senhor nos concede, é bom poder erguer o olhar do nosso coração para Maria. Na verdade, Ela, sendo Mãe, remete-nos para a relação com o Filho: leva-nos outra vez a Jesus, fala-nos de Jesus, conduz-nos a Jesus. Assim, a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus faz-nos imergir de novo no Mistério do Natal: Deus fez-se um de nós no seio de Maria, e a nós, que abrimos a Porta Santa para iniciar o Jubileu, recorda-se-nos hoje que «Maria é a porta pela qual Cristo entrou neste mundo» (Santo Ambrósio, Epístola 42, 4: pl , vii ).
O apóstolo Paulo resume este Mistério afirmando que «Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher» (Gl 4, 4). Estas palavras — “nascido de uma mulher” — ressoam agora no nosso coração e recordam-nos que Jesus, nosso Salvador, se fez carne e se revela na fragilidade da carne.
Nascido de uma mulher. Antes de mais, esta expressão leva-nos ao Natal: o Verbo fez-se carne. O apóstolo Paulo, ao especificar que nasceu de uma mulher, sente quase a necessidade de nos recordar que Deus se fez verdadeiramente homem através de um ventre humano. Hoje em dia, há uma tentação que fascina muitas pessoas e pode enganar também muitos cristãos: imaginar ou fabricar para nós um Deus “abstrato”, ligado a uma vaga ideia religiosa, a uma fugaz agradável emoção. Ao invés, é concreto, é humano: Ele nasceu de uma mulher, tem um rosto e um nome, e chama-nos a manter uma relação com Ele. Cristo Jesus, o nosso Salvador, nasceu de uma mulher; tem carne e sangue; veio do seio do Pai e, todavia, encarnou no ventre da Virgem Maria; pertence aos altos céus e, apesar disso, habita nas profundezas da terra; é o Filho de Deus e, no entanto, fez-se Filho do homem. Ele, imagem de Deus Omnipotente, veio na fraqueza e, embora não tivesse mácula alguma, «Deus o fez pecado por nós» (2 Cor 5, 21). Nasceu de uma mulher e é um de nós. Por isso mesmo, Ele pode salvar-nos.
Nascido de uma mulher. Esta expressão fala-nos também da humanidade de Cristo, para nos dizer que Ele se revela na fragilidade da carne. Se Ele desceu no seio de uma mulher, nascendo como todas as criaturas, ei-lo que se mostra na fragilidade de uma criança. É por isso que os pastores, quando foram ver com os seus próprios olhos o que o Anjo lhes tinha anunciado, não encontram sinais extraordinários nem manifestações grandiosas, mas «encontraram Maria, José e o menino deitado na manjedoura» (Lc 2, 16). Encontram um recém-nascido indefeso, frágil, necessitado dos cuidados da mãe, de agasalhos e leite, de carícias e amor. São Luís Maria Grignion de Montfort diz que a Sabedoria divina, «embora o pudesse fazer, não quis dar-se diretamente aos homens, mas preferiu dar-se por meio da Virgem Santíssima. Nem quis vir ao mundo na idade de um homem perfeito, independente dos outros, mas como uma pobre pequena criança, necessitada dos cuidados e do sustento da Mãe» (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, 139). E assim, em toda a vida de Jesus, podemos confirmar esta escolha de Deus, a escolha da pequenez e do escondimento. Ele nunca sucumbirá ao fascínio do poder divino para realizar grandes sinais e impor-se aos outros, como o demónio lhe tinha sugerido, mas revelará o amor de Deus na beleza da sua humanidade, habitando entre nós, partilhando a vida comum feita de trabalhos e sonhos, compadecendo-se dos sofrimentos do corpo e do espírito, abrindo os olhos aos cegos e revigorando os desanimados. Compadecendo-se! As três atitudes de Deus são misericórdia, proximidade e compaixão: Deus faz-se próximo, misericordioso e compassivo. Não o esqueçamos. Jesus mostra-nos Deus através da sua frágil humanidade, que cuida dos mais frágeis.
Irmãs e irmãos, é bonito pensar que Maria, a jovem de Nazaré, nos leva sempre para o Mistério do seu Filho, Jesus. Ela recorda-nos que Jesus vem na nossa carne e, por isso, o lugar privilegiado onde podemos encontrá-lo é, antes de mais, a nossa vida, a nossa frágil humanidade e a de quem passa por nós todos os dias. Invocando-a como Mãe de Deus, afirmamos que Cristo foi gerado pelo Pai, mas nasceu verdadeiramente do ventre de uma mulher. Afirmamos que Ele é o Senhor do tempo, mas com a sua presença amorosa habita este nosso tempo, mesmo este novo ano. Afirmamos que é o Salvador do mundo, mas podemos encontrá-lo e devemos procurá-lo no rosto de cada ser humano. E se Ele, que é o Filho, se fez pequeno para ser segurado nos braços de uma mãe, para ser cuidado e amamentado, então isso significa que ainda hoje Ele vem naqueles que precisam dos mesmos cuidados: em todos os irmãos e irmãs que encontramos e têm necessidade de atenção, escuta e ternura.
Confiemos a Maria, Mãe de Deus, este novo ano que começa, para que como Ela também nós aprendamos a encontrar a grandeza de Deus na pequenez da vida; para que aprendamos a cuidar de toda a criatura nascida de uma mulher, antes de mais protegendo o dom precioso da vida, como faz Maria: a vida no ventre materno, a vida das crianças, a vida de quem sofre, a vida dos pobres, dos idosos, de quem se encontra só, dos moribundos. E hoje, Dia Mundial da Paz, todos somos chamados a acolher este convite que brota do coração materno de Maria: proteger a vida, cuidar das vidas feridas — e há tantas vidas feridas, tantas! — restituir a dignidade à vida de cada ser “nascido de uma mulher” é a base fundamental para construir uma civilização de paz. Por isso, «faço apelo a um firme compromisso de promover o respeito pela dignidade da vida humana, desde a conceção até à morte natural, para que cada pessoa possa amar a sua vida e olhar para o futuro com esperança» (Mensagem para o lviii Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2025).
Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, espera-nos precisamente ali no presépio. Tal como aos pastores, ela mostra-nos o Deus que nos surpreende sempre e que não vem no esplendor dos céus, mas na pequenez de uma manjedoura. Confiemos-lhe este novo ano jubilar, entreguemos-lhe as nossas questões, preocupações, sofrimentos, alegrias e tudo o que trazemos no coração. Ela é Mãe! Confiemos-lhe o mundo inteiro, para que a esperança renasça e a paz germine finalmente em todos os povos da terra.
A história conta que, em Éfeso, quando os bispos entravam na igreja, o povo fiel, com bastões nas mãos, gritava: “Mãe de Deus!”. Os bastões, certamente, eram o aviso do que aconteceria se não declarassem o dogma da “Mãe de Deus”. Hoje, nós não temos bastões, mas temos coração e voz de filhos. Por isso, todos juntos, com força e por três vezes, aclamemos a Santa Mãe de Deus. Todos juntos: “Santa Mãe de Deus! Santa Mãe de Deus! Santa Mãe de Deus!”.
Angelus da solenidade de Maria
Santíssima Mãe de Deus
1 de janeiro
Queridos irmãos e irmãs, bom ano!
A surpresa e a alegria do Natal continuam no Evangelho da liturgia de hoje (Lc 2, 16-21), que narra a chegada dos pastores à gruta de Belém. Depois do anúncio dos anjos, com efeito, «foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura» (v. 16). Este encontro enche todos de espanto, porque os pastores «começaram a espalhar o que lhes tinham dito a respeito daquele Menino» (v. 17): o recém-nascido é o «Salvador», o «Cristo», o «Senhor» (v. 11)!
Reflitamos sobre o que os pastores viram em Belém, o Menino, e também sobre o que não viram, ou seja, o coração de Maria, que conservava e ponderava todas estas coisas (cf. v. 19).
Antes de mais, o Menino Jesus: este nome hebraico significa “Deus salva”, e é precisamente o que fará. O Senhor, com efeito, veio ao mundo para nos dar a sua própria vida. Pensemos nisto: todos os homens são filhos, mas nenhum de nós escolheu nascer. Deus, pelo contrário, escolheu nascer por nós. Deus escolheu. Jesus é a revelação do seu amor eterno, que traz a paz ao mundo.
Ao Messias recém-nascido, que manifesta a misericórdia do Pai, corresponde o coração de Maria, a Virgem Mãe. Este coração é o ouvido que escutou o anúncio do Arcanjo; este coração é a mão de esposa dada a José; este coração é o abraço que envolveu Isabel na sua velhice. No coração de Maria, nossa Mãe, bate a esperança; bate a esperança da redenção e da salvação para cada criatura.
As mães! As mães têm sempre no coração os seus filhos. Hoje, neste primeiro dia do ano, dedicado à paz, pensemos em todas as mães que se alegram no seu coração, e em todas as mães que têm o coração cheio de dor, porque os seus filhos foram-lhes tirados pela violência, pela soberba, pelo ódio. Como é bela a paz! E como é desumana a guerra, que despedaça o coração das mães!
À luz destas reflexões, cada um de nós se pode perguntar: sei permanecer em silêncio a contemplar o nascimento de Jesus? E procuro preservar no coração este Acontecimento, a sua mensagem de bondade e de salvação? E eu, como posso retribuir um dom tão grande com um gesto gratuito de paz, de perdão, de reconciliação? Cada um de nós encontrará algo para fazer, e isto fará bem.
Maria, a Santa Mãe de Deus, nos ensine a preservar no coração e a testemunhar no mundo a alegria do Evangelho.
Angelus do domingo ii do Natal
5 de janeiro
Queridos irmãos e irmãs, bom domingo! E parabéns, sois corajosos, com a chuva! Bom domingo!
Hoje o Evangelho (cf. Jo 1, 1-18), falando-nos de Jesus, Verbo feito carne, diz-nos que «a luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a admitiram» (Jo 1, 5). Recorda-nos, portanto, quanto é poderoso o amor de Deus, que não se deixa vencer por nada e que, para além de obstáculos e rejeições, continua a resplandecer e a iluminar o nosso caminho.
Vemo-lo no Natal, quando o Filho de Deus, feito homem, supera tantos muros e tantas divisões. Enfrenta o fechamento de mente e de coração dos “grandes” do seu tempo, mais preocupados em defender o poder do que em procurar o Senhor (cf. Mt 2, 3-18). Partilha a vida humilde de Maria e José, que o acolhem e criam com amor, mas com as possibilidades limitadas e as dificuldades de quem não tem meios: eram pobres. Oferece-se, frágil e indefeso, no encontro com os pastores (cf. Lc 2, 8-18), homens com o coração marcado pelas amarguras da vida e pelo desprezo da sociedade; e depois aos Magos (cf. Mt 2, 1), que, impulsionados pelo desejo de o conhecer, enfrentam uma longa viagem e encontram-no numa casa de gente comum, em grande pobreza.
Perante estes e muitos outros desafios, que parecem contradições, Deus nunca pára — ouçamos bem: Deus nunca pára — encontra mil maneiras para chegar a todos e a cada um de nós, onde quer que estejamos, sem cálculos nem condições, abrindo, mesmo nas noites mais obscuras da humanidade, janelas de luz que a escuridão não pode encobrir (cf. Is 9, 1-6). É uma realidade que nos consola e que nos dá coragem, sobretudo num tempo como o nosso, um tempo que não é fácil, onde há tanta necessidade de luz, de esperança e de paz, um mundo onde os homens criam por vezes situações tão complicadas que parece impossível sair delas. Parece impossível sair de tantas situações, mas hoje a Palavra de Deus diz-nos que não é assim! Pelo contrário, chama-nos a imitar o Deus do amor, abrindo rasgos de luz onde quer que possamos, com quem quer que encontremos, em todos os contextos: familiar, social, internacional. Convida-nos a não ter medo de dar o primeiro passo. É este o convite do Senhor hoje: não tenhamos medo de dar o primeiro passo: é preciso coragem para o fazer, mas não tenhamos medo. Escancarando janelas luminosas de proximidade a quem sofre, de perdão, de compaixão, de reconciliação: estes são os muitos primeiros passos que devemos dar para tornar o caminho mais claro, seguro e possível para todos. E este convite ressoa de modo particular no Ano jubilar que acaba de começar exortando-nos a ser mensageiros de esperança com simples mas concretos “sins” à vida, com escolhas que dão vida. Façamo-lo, todos: este é o caminho da salvação!
E assim, no início de um novo ano, podemos perguntar-nos: como posso abrir uma janela de luz no meu ambiente e nas minhas relações? Onde posso ser um rasgo que deixa passar o amor de Deus? Qual é o primeiro passo que deverei dar hoje?
Maria, estrela que guia até Jesus, nos ajude a ser para todos testemunhas luminosas do amor do Pai.
Solenidade da Epifania do Senhor
6 de janeiro
«Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo» (Mt 2, 2): é este o testemunho que os Magos dão aos habitantes de Jerusalém, anunciando-lhes que nasceu o rei dos Judeus.
Os Magos testemunham que se puseram a caminho e realizaram uma mudança nas suas vidas, porque viram uma nova luz no céu. Enquanto celebramos a Epifania do Senhor no Jubileu da Esperança, podemos deter-nos a refletir sobre esta imagem. Gostaria de sublinhar três caraterísticas da estrela de que nos fala o evangelista Mateus: é brilhante, visível para todos e indica um caminho.
Antes de mais, a estrela é brilhante. No tempo de Jesus, muitos governantes faziam-se chamar “estrelas” porque se sentiam importantes, poderosos e famosos. Não foi, porém, a sua luz — a de nenhum deles! — que revelou aos Magos o milagre do Natal. O seu esplendor artificial e frio, fruto de cálculos e jogos de poder, não foi capaz de responder à necessidade de novidade e esperança destas pessoas em busca. Fê-lo outro tipo de luz, simbolizada pela estrela, que ilumina e aquece, queimando e deixando-se consumir. A estrela fala-nos da única luz que pode indicar a todos o caminho da salvação e da felicidade: a do amor. É a única luz que nos fará felizes!
Antes de mais, o amor de Deus, que se fez homem e se entregou a nós, sacrificando a sua vida. Depois, por repercussão, aquele [amor] com que também nós somos chamados a gastar-nos uns pelos outros, tornando-nos, com a sua ajuda, um sinal recíproco de esperança, mesmo nas noites escuras da vida. Pensemos nisto: somos luminosos na esperança? Somos capazes de dar esperança aos outros, com a luz da nossa fé?
Como a estrela guiou, com o seu brilho, os Magos até Belém, assim também nós, com o nosso amor, podemos levar a Jesus as pessoas que encontramos, fazendo-as conhecer, no Filho de Deus feito homem, a beleza do rosto do Pai (cf. Is 60, 2) e o seu modo de amar, feito de proximidade, compaixão e ternura. Nunca o esqueçamos: Deus é próximo, compassivo e terno. O amor é isto: proximidade, compaixão e ternura. E podemos fazê-lo sem necessidade de instrumentos extraordinários e meios sofisticados, mas tornando o nosso coração luminoso na fé, o nosso olhar generoso no acolhimento, os nossos gestos e palavras cheios de bondade e humanidade.
Por isso, enquanto vemos os Magos que, com os olhos dirigidos ao céu, procuram a estrela, peçamos ao Senhor para ser, uns para os outros, luzes que levam ao encontro com Ele (cf. Mt 5, 14-16). É mau que uma pessoa não seja luz para os outros.
E assim chegamos à segunda caraterística da estrela: ela é visível para todos. Os Magos não seguem as indicações de um código secreto, mas uma estrela que veem resplandecer no firmamento. Eles reparam nela; outros, como Herodes e os escribas, nem sequer se apercebem da sua presença. Porém, a estrela está sempre lá, acessível a quem levante o olhar para o céu, em busca de um sinal de esperança. Eu sou um sinal de esperança para os outros?
Esta é uma mensagem importante: Deus não se revela em círculos restritos ou a uns poucos privilegiados; Deus oferece a sua companhia e orientação a quem quer que o procure de coração sincero (cf. Sl 145, 18). Aliás, muitas vezes Ele antecipa as nossas demandas, vindo procurar-nos ainda antes de nós lhe pedirmos (cf. Rm 10, 20; Is 65, 1). Precisamente por isso, no presépio, representamos os Magos com caraterísticas que abrangem todas as idades e raças — um jovem, um adulto, um idoso, com os traços somáticos dos vários povos da terra — para nos recordar que Deus procura sempre todos, todos!
Como é importante meditarmos sobre isto nos dias de hoje, num tempo em que as pessoas e as nações, embora equipadas com meios de comunicação cada vez mais poderosos, parecem estar menos dispostas a compreender-se, aceitar-se e encontrar-se na sua diversidade!
A estrela, que a todos no céu oferece a sua luz, recorda-nos que o Filho de Deus veio ao mundo para encontrar todo o homem e mulher da terra, independentemente da etnia, língua ou povo a que pertença (cf. At 10, 34-35; Ap 5, 9), e que nos confia a mesma missão universal (cf. Is 60, 3). Isto é, chama-nos a banir todas as formas de discriminação, marginalização e descarte das pessoas, e a promover, em nós mesmos e nos ambientes em que vivemos, uma forte cultura do acolhimento, na qual às portas fechadas do medo e da rejeição se prefiram espaços abertos de encontro, integração e partilha; lugares seguros onde todos possam encontrar aconchego e abrigo.
É por isso que a estrela está no céu: não para permanecer distante e inacessível, antes pelo contrário, para que a sua luz seja visível a todos, para que chegue a todas as casas e ultrapasse qualquer barreira, levando a esperança aos cantos mais remotos e esquecidos do planeta. Está no céu para dizer a todos, com a sua luz generosa, que Deus não se nega a ninguém nem se esquece de ninguém (cf. Is 49, 15). Porquê? Porque Ele é um Pai cuja maior alegria é ver os seus filhos regressarem unidos a casa, vindos de todas as partes do mundo (cf. Is 60, 4); é vê-los construir pontes, aplanar caminhos, procurar quem se perdeu e carregar aos ombros quem tem dificuldade em caminhar, para que ninguém fique fora e todos participem da alegria da sua casa.
A estrela fala-nos do sonho de Deus: que toda a humanidade, na riqueza das suas diferenças, chegue a formar uma só família e viva unida na prosperidade e na paz (cf. Is 2, 2-5).
E isto leva-nos à última caraterística da estrela: a de indicar o caminho. Também esta é uma pista de reflexão, especialmente no contexto do Ano Santo que estamos a celebrar, no qual um dos gestos distintivos é a peregrinação.
A luz da estrela convida-nos a realizar um caminho interior que, como escreveu João Paulo ii , liberte o nosso coração de tudo o que não é caridade, para «termos a possibilidade de nos encontrarmos plenamente com Cristo, confessando a nossa fé n’Ele e recebendo a abundância da sua misericórdia» (Carta a quantos se estão preparando para celebrar fielmente o Grande Jubileu, 29 de junho de 1999, 12).
Caminhar juntos «é típico de quem anda à procura do sentido da vida» (cf. Bula Spes non confundit, 5). E nós, olhando para a estrela, possamos também renovar o nosso compromisso de sermos mulheres e homens “da Via”, como eram definidos os cristãos nas origens da Igreja (cf. At 9, 2).
Que deste modo o Senhor nos transforme em luzes que apontam para Ele, tal como Maria, generosos na doação, abertos no acolhimento e humildes no caminhar juntos, para que o possamos encontrar, reconhecer, adorar e d’Ele partir renovados, levando ao mundo a luz do seu amor.
Angelus da solenidade
da Epifania do Senhor
6 de janeiro
Estimados irmãos e irmãs
feliz festa da Epifania!
Hoje a Igreja celebra a manifestação de Jesus, e o Evangelho concentra-se nos Magos que, no final de uma longa viagem, chegam a Jerusalém para adorar Jesus.
Se prestarmos atenção, descobrimos algo um pouco estranho: enquanto aqueles sábios vêm de longe para encontrar Jesus, quantos estavam próximos não dão um passo rumo à gruta de Belém. Atraídos e orientados pela estrela, os Magos enfrentam grandes despesas, põem o seu tempo à disposição, aceitam os numerosos riscos e incertezas que, naquela época, nunca faltavam. No entanto, superam todas as dificuldades para chegar a ver o Rei Messias, pois sabem que este acontecimento é algo de único na história da humanidade e não querem faltar ao encontro. Tinham dentro de si a inspiração e seguiram-na.
Ao contrário, aqueles que vivem em Jerusalém, que deveriam ser os mais felizes e os mais dispostos a acorrer, ficam parados. Os sacerdotes, os teólogos interpretam corretamente as Sagradas Escrituras e dão aos Magos indicações sobre onde encontrar o Messias, mas não abandonam as suas “cátedras”. Estão satisfeitos com o que têm e não se põem em busca, não julgam que vale a pena sair de Jerusalém.
Isto, irmãs e irmãos, faz-nos refletir e, num certo sentido, provoca-nos, pois suscita uma interrogação: nós, eu, hoje, a que categoria pertencemos? Somos mais semelhantes aos pastores, que naquela mesma noite vão à pressa à gruta, e aos Magos do Oriente, que partem confiantes em busca do Filho de Deus que se fez homem, ou somos mais parecidos com aqueles que, embora fisicamente muito próximos d’Ele, não abrem as portas do seu coração e da sua vida, permanecendo fechados e insensíveis à presença de Jesus? Façamos esta pergunta. A que grupo de pessoas pertenço?
Segundo uma história, um quarto rei mago chega tarde a Jerusalém, exatamente durante a crucificação de Jesus — é um relato bonito, não é histórico, mas é uma história bonita — porque parou ao longo do caminho para ajudar todos os necessitados, distribuindo-lhes os dons preciosos que tinha trazido para Jesus. No final, chega já idoso e da cruz Jesus diz-lhe: “Em verdade te digo que tudo o que fizeste ao mais pequenino dos irmãos, foi a mim que o fizeste”. O Senhor sabe tudo o que fizemos pelos outros!
Peçamos à Virgem Maria que nos ajude a fim de que, imitando os pastores e os Magos, saibamos reconhecer Jesus próximo no pobre, na Eucaristia, no abandonado, no irmão, na irmã!
Audiência geral de quarta-feira
8 de janeiro
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Desejo dedicar esta e a próxima catequese às crianças e refletir sobre o flagelo do trabalho infantil.
Hoje sabemos dirigir o olhar para Marte ou para mundos virtuais, mas temos dificuldade em fitar nos olhos uma criança que foi deixada às margens e que é explorada e abusada. O século que gera inteligência artificial e concebe existências multiplanetárias ainda não fez as contas com o flagelo da infância humilhada, explorada, mortalmente ferida. Pensemos nisto.
Antes de mais, perguntemo-nos: que mensagem nos transmite a Sagrada Escritura sobre as crianças? É curioso notar como a palavra que mais se repete no Antigo Testamento, depois do nome divino de Javé, seja a palavra ben, ou seja, “filho”: quase cinco mil vezes. «Os filhos (ben) são bênçãos do Senhor, os frutos do ventre, um mimo do Senhor» (Sl 127, 3). Os filhos são uma dádiva de Deus. Infelizmente, esta dádiva nem sempre é tratada com respeito. A própria Bíblia conduz-nos nos caminhos da história onde ressoam os cânticos de alegria, mas onde se erguem também os gritos das vítimas. Por exemplo, no livro das Lamentações, lemos: «A língua do menino do peito colou-se ao seu paladar por causa da sede. As crianças reclamam pão, e não há quem lho reparta» (4, 4); e o profeta Naum, recordando o que tinha acontecido nas antigas cidades de Tebas e Nínive, escreve: «Os seus filhos foram esmagados nas esquinas das ruas» (3, 10). Pensemos em quantas crianças estão, hoje, a morrer de fome e de miséria, ou dilaceradas por bombas.
Também sobre Jesus recém-nascido irrompe imediatamente a tempestade da violência de Herodes, que massacra as crianças de Belém. Um drama sombrio que se repete de outras formas na história. E eis, para Jesus e seus pais, o pesadelo de se tornarem refugiados num país estrangeiro, como acontece também hoje a tantas pessoas (cf. Mt 2, 13-18), a tantas crianças. Passada a tempestade, Jesus cresce numa aldeia nunca mencionada no Antigo Testamento, Nazaré; aprende o ofício de carpinteiro do seu pai legal, José (cf. Mc 6, 3; Mt 13, 55). Assim «o Menino crescia e robustecia-Se, enchendo-Se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele» (Lc 2, 40).
Na sua vida pública, Jesus andava a pregar pelas aldeias juntamente com os seus discípulos. Um dia, algumas mães aproximam-se d’Ele e apresentam-lhe os seus bebés para que os abençoe; mas os discípulos repreendem-nas. Então Jesus, rompendo com a tradição que considerava a criança apenas como um objeto passivo, chama os discípulos para junto de si e diz: «Deixai vir a Mim os pequeninos não os impeçais, pois deles é o reino de Deus». E assim, aponta os pequenos como modelo para os adultos. E acrescenta solenemente: «Em verdade vos digo: quem não receber o reino de Deus como um menino não entrará nele» (Lc 18, 16-17).
Numa passagem semelhante, Jesus chama uma criança, coloca-a no meio dos discípulos e diz: «Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no reino dos céus» (Mt 18, 3). E depois adverte: «Mas se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em Mim, seria preferível que lhe suspendessem em volta do pescoço uma mó de moinho, das movidas pelos jumentos, e o lançassem nas profundezas do mar» (Mt 18, 6).
Irmãos e irmãs, os discípulos de Jesus Cristo nunca deveriam permitir que as crianças sejam negligenciadas ou maltratadas, que sejam privadas dos seus direitos, que não sejam amadas e protegidas. Os cristãos têm o dever de prevenir com empenho e de condenar com firmeza as violências ou os abusos contra os menores.
Ainda hoje, em particular, são demasiadas as crianças obrigadas a trabalhar. Mas uma criança que não sorri, uma criança que não sonha, não poderá conhecer nem fazer desabrochar os seus talentos. Em toda a parte do mundo há crianças exploradas por uma economia que não respeita a vida; uma economia que, ao fazê-lo, queima a nossa maior reserva de esperança e de amor. Mas
as crianças ocupam um lugar especial no coração de Deus, e quem causa dano a uma criança terá de prestar contas a Ele.
Queridos irmãos e irmãs, quem se reconhece filho de Deus, e especialmente quem é convidado a levar a boa nova do Evangelho aos outros, não pode permanecer indiferente; não pode aceitar que as meninas e os meninos, em vez de serem amados e protegidos, lhes seja roubada a sua infância, os seus sonhos, vítimas da exploração e da marginalização.
Peçamos ao Senhor que nos abra a mente e o coração ao cuidado e à ternura, e que cada menino e cada menina possa crescer em idade, sabedoria e graça (cf. Lc 2, 52), recebendo e dando amor. Obrigado!
discurso aos membros
do corpo diplomático acreditado
junto da santa sé para a apresentação
dos bons votos de ano novo
9 de janeiro
Excelências, Senhoras e Senhores!
Reunimo-nos de novo esta manhã para um momento de encontro que, para além do seu caráter institucional, quer ser acima de tudo familiar: um momento em que a família dos povos se reúne simbolicamente através da vossa presença, para trocar votos fraternos, deixando para trás as contendas que dividem, e redescobrir sobretudo o que une. No início deste ano, que para a Igreja Católica tem uma relevância particular, o nosso encontro tem um valor simbólico especial, uma vez que o próprio significado do Jubileu é “fazer uma pausa” no frenesim que marca cada vez mais a vida quotidiana, para nos revigorarmos e alimentarmos com o que é verdadeiramente essencial: redescobrir que somos filhos de Deus e n’Ele irmãos, perdoar as ofensas, amparar os fracos e os pobres, deixar repousar a terra, praticar a justiça e redescobrir a esperança. A isso são chamados todos aqueles que servem o bem comum e exercem aquela elevada forma de caridade que é a política.
É neste espírito que vos acolho, agradecendo antes de mais a Sua Excelência o senhor Embaixador George Poulides, Decano do Corpo Diplomático, pelas palavras com que se fez intérprete dos sentimentos comuns. A todos dirijo uma calorosa saudação de boas-vindas, agradecido pelo afeto e pela estima que os vossos povos e governos nutrem pela Sé Apostólica e que vós bem representais. Testemunham-no as visitas de mais de trinta Chefes de Estado ou de Governo que tive a alegria de receber no Vaticano em 2024, bem como a assinatura do Segundo Protocolo Adicional ao Acordo entre a Santa Sé e Burkina Faso sobre o estatuto jurídico da Igreja Católica e do Acordo entre a Santa Sé e a República Checa sobre algumas questões jurídicas, rubricados no decurso do último ano. No passado mês de outubro, o Acordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China sobre a nomeação dos Bispos foi renovado por mais quatro anos, sinal da vontade de prosseguir um diálogo respeitoso e construtivo em vista do bem da Igreja católica no país e de todo o povo chinês.
Da minha parte, quis retribuir este afeto com a realização das recentes viagens apostólicas, que me levaram a visitar terras distantes como Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura, e mais próximas como Bélgica e Luxemburgo, e por fim a Córsega. Embora se trate, obviamente, de realidades muito diversas, cada viagem é para mim uma oportunidade de encontrar e dialogar com povos, culturas e experiências religiosas diferentes, e para levar uma palavra de encorajamento e conforto, em particular às pessoas mais vulneráveis. A estas viagens juntam-se as três visitas que fiz em Itália, às cidades de Verona, Veneza e Trieste.
É precisamente às autoridades italianas, nacionais e locais, que no início deste ano jubilar desejo exprimir, de modo especial, a minha gratidão pelos esforços que multiplicaram no sentido de preparar Roma para o Jubileu. O trabalho incessante destes meses, que causou não poucos incómodos, está agora a ser compensado com a melhoria de alguns serviços e espaços públicos, de modo que todos, cidadãos, peregrinos e turistas, possam aproveitar ainda mais as belezas da Cidade Eterna. Dirijo um pensamento particular aos romanos, que são conhecidos pela sua hospitalidade, agradecendo-lhes a paciência que tiveram nos últimos meses e a que terão para acolher os numerosos visitantes que chegarão. Desejo também agradecer de coração a todas as forças de segurança, à Proteção Civil, às autoridades de saúde e aos voluntários que, quotidianamente, se desvelam para garantir a segurança e o bom andamento do Jubileu.
Prezados Embaixadores!
Nas palavras do profeta Isaías que, segundo o relato transmitido pelo evangelista Lucas (4, 16-21), o Senhor Jesus faz suas na sinagoga de Nazaré, ao iniciar a sua vida pública, encontramos sintetizado não só o mistério do Natal que acabámos de celebrar, mas também o do Jubileu que estamos a viver. Cristo veio «para levar a boa nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano da graça do Senhor» (Is 61, 1-2a).
Infelizmente, começamos este ano com o mundo dilacerado por numerosos conflitos, pequenos e grandes, mais ou menos conhecidos, e também pelo recomeço de atos de terror abomináveis, como os que ocorreram recentemente em Magdeburgo, na Alemanha, e em Nova Orleães, nos Estados Unidos.
Verificamos ainda que, em muitos países, existem cada vez mais contextos sociais e políticos exacerbados por contrastes crescentes. Deparamo-nos com sociedades cada vez mais polarizadas, nas quais fermenta um sentimento generalizado de medo e desconfiança em relação ao próximo e ao futuro. Esta situação é agravada pela contínua produção e difusão de fake news, que não distorcem apenas a realidade dos factos, como acabam por distorcer as consciências, suscitando falsas perceções da realidade e gerando um clima de suspeita que fomenta o ódio, prejudica a segurança das pessoas e compromete a convivência civil e a estabilidade de nações inteiras. Exemplos trágicos disso são os atentados sofridos pelo primeiro-ministro da República Eslovaca e pelo presidente eleito dos Estados Unidos da América.
Este clima de insegurança incita a que se ergam novas barreiras e se desenhem novos confins, enquanto outros, como o que divide a ilha de Chipre há mais de cinquenta anos e o que corta em duas a península coreana há mais de setenta, se mantêm firmes, separando famílias e seccionando casas e cidades. Os confins modernos pretendem ser linhas de demarcação identitária, onde a diversidade é motivo de suspeita, desconfiança e medo: «O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. […] Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o “meu” mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas “os outros”»1. Paradoxalmente, o termo confim indica não um lugar que separa, mas que une, “onde se acaba em conjunto” (cum-finis), se pode encontrar o outro, conhecê-lo e dialogar com ele.
O meu desejo para este novo ano é que o Jubileu possa representar para todos, cristãos e não cristãos, uma oportunidade para repensar também as relações que nos unem, enquanto seres humanos e comunidades políticas; para superar a lógica do confronto e, em vez disso, abraçar a lógica do encontro; para que o tempo que nos espera não nos ache como errantes desesperados, mas peregrinos de esperança, isto é, pessoas e comunidades a caminho, empenhadas em construir um futuro de paz.
Por outro lado, perante a ameaça cada vez mais concreta de uma guerra mundial, a vocação da diplomacia é favorecer o diálogo entre todos, incluindo os interlocutores considerados mais “incómodos” ou que não se considerariam legitimados para negociar. É o único caminho para quebrar as cadeias de ódio e vingança que aprisionam e para desativar os engenhos do egoísmo humano, do orgulho e da soberba, que são a raiz de toda e qualquer vontade beligerante que destrói.
Excelências, Senhoras e Senhores!
À luz destas breves considerações, gostaria esta manhã de delinear convosco, a partir das palavras do profeta Isaías, alguns traços duma diplomacia da esperança, da qual todos somos chamados a tornar-nos arautos, a fim de que as densas nuvens da guerra possam ser dissipadas por um renovado vento de paz. Em termos gerais, gostaria de salientar algumas responsabilidades que todo o líder político deveria ter presente no desempenho das suas responsabilidades, a ser orientadas para a construção do bem comum e para o desenvolvimento integral da pessoa humana.
Levar a boa nova aos que sofrem
Em todas as épocas e lugares, o homem sempre foi seduzido pela ideia de ser autossuficiente, de poder bastar-se a si mesmo e ser artífice do seu próprio destino. Sempre que se deixa dominar por esta presunção, por meio de acontecimentos e circunstâncias exteriores vê-se forçado a descobrir-se fraco e impotente, pobre e necessitado, afligido por males espirituais e materiais. Por outras palavras, descobre que é mísero e precisa de alguém que o tire da sua miséria.
São muitas as misérias do nosso tempo. Nunca como nesta época a humanidade experimentou tanto progresso, desenvolvimento e riqueza, e talvez nunca como hoje se encontrou tão sozinha e perdida, a ponto de preferir não poucas vezes os animais de estimação aos filhos. Há uma urgente necessidade de uma boa nova. Um anúncio que, na perspetiva cristã, Deus nos oferece na noite de Natal! No entanto, todos — mesmo os que não são crentes — podem tornar-se portadores de um anúncio de esperança e de verdade.
Por outro lado, o ser humano é dotado de uma inata sede de verdade. Esta procura é uma dimensão fundamental da condição humana, na medida em que cada pessoa traz dentro de si uma nostalgia de verdade objetiva e um desejo inextinguível de conhecimento. Sempre foi assim, mas, nos nossos dias, a negação de verdades evidentes parece levar vantagem. Alguns desconfiam de argumentos racionais, considerados como instrumentos nas mãos de algum poder oculto, enquanto outros pensam possuir inequivocamente a verdade que eles próprios construíram, isentando-se assim do confronto e do diálogo com quem pensa de forma diferente. Tanto uns como os outros têm tendência para criar a sua própria “verdade”, desconsiderando a objetividade do verdadeiro. Estas tendências podem ser potenciadas pelos modernos meios de comunicação e pela inteligência artificial, utilizados abusivamente como meios de manipulação da consciência para fins económicos, políticos e ideológicos.
O progresso científico moderno, especialmente no domínio da informática e da comunicação, traz consigo indubitáveis vantagens para a humanidade. Permite-nos simplificar muitos aspetos da vida quotidiana, manter contacto com os nossos entes queridos, mesmo se estão fisicamente distantes, permanecer informados e aumentar os nossos conhecimentos. No entanto, as suas limitações e armadilhas não podem ser silenciadas, uma vez que contribuem frequentemente para a polarização, o estreitamento das perspetivas mentais, a simplificação da realidade, o risco de abusos, a ansiedade e, paradoxalmente, o isolamento, em especial através da utilização das redes sociais e dos jogos online.
O incremento da inteligência artificial amplifica as preocupações com os direitos de propriedade intelectual, a segurança do trabalho de milhões de pessoas, o respeito pela privacidade e a proteção do ambiente contra o lixo eletrónico (e-waste). Quase nenhum canto do mundo se manteve inalterado pela ampla transformação cultural causada pelos prementes progressos da tecnologia, e torna-se cada vez mais evidente um alinhamento com interesses comerciais, gerando uma cultura radicada no consumismo.
Este desequilíbrio ameaça subverter a ordem dos valores inerentes à criação de relações, à educação e à transmissão dos costumes sociais, enquanto pais, parentes próximos e educadores devem continuar a ser os principais canais de transmissão da cultura, em benefício dos quais os governos deveriam limitar-se a apoiar as suas responsabilidades educativas. Nesta perspetiva, inscreve-se também a educação como alfabetização mediática, destinada a fornecer instrumentos essenciais para promover as capacidades de pensamento crítico, a fim de dotar os jovens dos meios necessários ao seu crescimento pessoal e a uma participação ativa no futuro das suas sociedades.
Por isso, uma diplomacia da esperança é, antes de mais, uma diplomacia da verdade. Nos casos em que falta a ligação entre realidade, verdade e conhecimento, a humanidade já não consegue falar e compreender-se mutuamente, porque faltam os fundamentos de uma linguagem comum, ancorada na realidade das coisas e, portanto, universalmente compreensível. O objetivo da linguagem é a comunicação, que só é bem-sucedida quando as palavras são precisas e o significado dos termos é aceite de forma generalizada. O relato bíblico da Torre de Babel mostra o que acontece quando cada um fala apenas com a “sua” língua.
A comunicação, o diálogo e o empenho em prol do bem comum exigem boa fé e a adesão a uma linguagem comum. Isto é particularmente importante no âmbito diplomático, de modo especial em contextos multilaterais. O impacto e o êxito de cada palavra, declaração, resolução e, em geral, de cada texto negociado dependem desta condição. É um facto que o multilateralismo só é forte e eficaz quando se concentra nas questões tratadas e utiliza uma linguagem simples, clara e concertada.
Por conseguinte, é particularmente preocupante a tentativa de instrumentalizar os documentos multilaterais, alterando o significado dos termos ou reinterpretando unilateralmente o conteúdo dos tratados sobre os direitos humanos, a fim de promover ideologias que dividem e espezinham os valores e a fé dos povos. Com efeito, trata-se de uma verdadeira colonização ideológica que, de acordo com programas minuciosamente estudados, procura erradicar as tradições, a história e os vínculos religiosos dos povos. É uma mentalidade que, presumindo ter ultrapassado o que considera “as páginas negras da história”, abre espaço à cultura do cancelamento, não tolera as diferenças e centra-se nos direitos dos indivíduos, negligenciando os deveres para com os outros, em particular os mais fracos e frágeis2. Neste contexto, é inaceitável, por exemplo, falar de um chamado “direito ao aborto” que contradiz os direitos humanos, nomeadamente o direito à vida. Toda a vida deve ser protegida, em cada um dos seus momentos, desde a conceção até à morte natural, porque nenhuma criança é um erro nem tem culpa de existir, tal como nenhuma pessoa idosa ou doente pode ser descartada e privada de esperança.
Esta abordagem é particularmente densa de consequências no âmbito dos vários organismos multilaterais. Penso, em particular, na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, da qual a Santa Sé é membro fundador, tendo participado ativamente nas negociações que, há meio século, conduziram ao Acordo de Helsínquia de 1975. É cada vez mais urgente recuperar o “espírito de Helsínquia”, com o qual Estados adversários, considerados “inimigos”, conseguiram criar um espaço de encontro e não abandonar o diálogo, enquanto instrumento de resolução de conflitos.
Pelo contrário, as instituições multilaterais, a maioria das quais surgiu no final da Segunda Guerra Mundial, há oitenta anos, já não parecem capazes de garantir a paz e a estabilidade, a luta contra a fome e o desenvolvimento, para o que foram criadas, nem de responder de forma verdadeiramente eficaz aos novos desafios do século xxi , como as questões ambientais e de saúde pública, culturais e sociais, bem como os desafios colocados pela inteligência artificial. Muitas delas precisam de ser reformadas, tendo em conta que qualquer reforma deve ser construída com base nos princípios da subsidiariedade e da solidariedade, e no respeito pela igual soberania dos Estados, embora seja doloroso constatar que existe o risco de “monadologia” e de fragmentação em like-minded clubs que só deixam entrar neles os que pensam da mesma forma.
No entanto, não faltaram e não faltam sinais encorajadores onde há boa vontade para o encontro. Estou a pensar no Tratado de paz e amizade entre a Argentina e o Chile, assinado na Cidade do Vaticano a 29 de novembro de 1984, que, com a mediação da Santa Sé e a boa vontade das partes, pôs fim ao conflito do Estreito de Beagle, demonstrando que a paz e a amizade são possíveis quando dois membros da Comunidade internacional renunciam ao uso da força e se comprometem solenemente a respeitar todas as regras do direito internacional e a promover a cooperação bilateral. E, mais recentemente, estou a pensar nos sinais positivos das retomadas negociações para voltar à plataforma sobre o acordo nuclear iraniano, com o objetivo de garantir um mundo mais seguro para todos.
Curar os desesperados
Uma diplomacia da esperança é também uma diplomacia do perdão que, num tempo cheio de conflitos abertos ou latentes, é capaz de tecer novamente as relações dilaceradas pelo ódio e pela violência, e assim enfaixar as feridas dos corações despedaçados de demasiadas vítimas. O meu desejo para este ano de 2025 é que toda a Comunidade internacional se esforce, antes de mais, para pôr fim à guerra que ensanguenta a martirizada Ucrânia há quase três anos e que causou um enorme número de vítimas, incluindo tantos civis. Alguns sinais encorajadores surgiram no horizonte, mas é necessário ainda muito trabalho no sentido de criar as condições para uma paz justa e duradoura e sarar as feridas infligidas pela agressão.
De igual modo, renovo o meu apelo a um cessar-fogo e à libertação dos reféns israelitas em Gaza, onde se vive uma situação humanitária muito grave e ignóbil, e apelo a que a população palestiniana receba toda a ajuda necessária. O meu desejo é que israelitas e palestinianos possam reconstruir as pontes do diálogo e da confiança mútua, a começar pelos mais jovens, para que as gerações vindouras possam viver lado a lado em dois Estados, em paz e segurança, e para que Jerusalém seja a “cidade do encontro”, onde cristãos, judeus e muçulmanos convivam em harmonia e respeito. Precisamente no passado mês de junho, nos jardins do Vaticano, recordámos todos juntos o 10º aniversário da Invocação pela Paz na Terra Santa, que a 8 de junho de 2014 contou com a presença do então Presidente do Estado de Israel, Shimon Peres, e do Presidente do Estado da Palestina, Mahmoud Abbas, juntamente com o Patriarca Bartolomeu I. Esse encontro tinha testemunhado que o diálogo é sempre possível e que não podemos render-nos à ideia do prevalecimento da inimizade e do ódio entre os povos.
No entanto, há que notar também que a guerra é alimentada pela proliferação contínua de armas, cada vez mais sofisticadas e destrutivas. Reitero esta manhã o apelo para que «com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna»3.
A guerra é sempre um fracasso! O envolvimento de civis, especialmente crianças, e a destruição de infraestruturas não é só uma derrota, mas equivale a deixar que seja o mal a vencer entre os dois adversários. Não podemos aceitar, de forma alguma, o bombardeamento de populações civis ou o ataque a infraestruturas necessárias para a sua sobrevivência. Não podemos aceitar ver crianças a morrer de frio porque os hospitais foram destruídos ou foi atingida a rede energética de um país.
Toda a Comunidade internacional parece concordar sobre o respeito do direito internacional humanitário, mas a sua não aplicação plena e concreta levanta questões. Se esquecemos o que está na base, os fundamentos da nossa existência, da sacralidade da vida, dos princípios que movem o mundo, como podemos esperar que este direito seja efetivo? É preciso redescobrir estes valores e, por sua vez, encarná-los em preceitos da consciência pública, para que o princípio de humanidade esteja verdadeiramente na base da ação. Por isso, espero que este ano jubilar seja um momento propício no qual a Comunidade internacional se esforce ativamente para que os direitos invioláveis do homem não sejam sacrificados diante de exigências militares.
Tendo em conta estes pressupostos, apelo a que se continue a trabalhar a fim de que o incumprimento do direito internacional humanitário deixe de ser uma opção. São necessários mais esforços para pôr em prática o que se discutiu também na 34ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, que teve lugar no passado mês de outubro em Genebra. Acaba de ser celebrado o 75º aniversário das Convenções de Genebra, e continua a ser indispensável que as normas e os princípios em que se baseiam encontrem cumprimento nos demasiados teatros de guerra ainda abertos.
Entre eles, estou a pensar nos vários conflitos que persistem no continente africano, particularmente no Sudão, Sahel, Corno de África e em Moçambique, onde está em curso uma grave crise política, e nas regiões orientais da República Democrática do Congo, nas quais a população é afetada por graves carências sanitárias e humanitárias, agravadas por vezes pelo flagelo do terrorismo, provocando a perda de vidas e o deslocar-se de milhões de pessoas. A isto juntam-se os efeitos devastadores de inundações e secas, que agravam as condições já de si precárias em várias partes de África.
No entanto, a perspetiva de uma diplomacia do perdão não é apenas chamada a sanar conflitos internacionais ou regionais. Ela investe cada pessoa com a responsabilidade de se tornar um artesão da paz, para que se possam construir sociedades verdadeiramente pacíficas, nas quais as legítimas diferenças políticas e também sociais, culturais, étnicas e religiosas, constituam uma riqueza e não uma fonte de ódio e divisão.
O meu pensamento vai em particular para Myanmar, onde a população sofre muito com os contínuos confrontos armados, que obrigam as pessoas a fugir das suas casas e a viver com medo.
É doloroso constatar que subsistem, sobretudo no continente americano, vários contextos de aceso confronto político e social. Estou a pensar no Haiti, onde desejo que, o mais rapidamente possível, possam dar-se os passos necessários para restabelecer a ordem democrática e pôr termo à violência. Estou também a pensar na Venezuela e na grave crise política que está a enfrentar. Esta crise só pode ser superada através da adesão sincera aos valores da verdade, da justiça e da liberdade, através do respeito pela vida, a dignidade e os direitos de todas as pessoas — incluindo as que foram detidas na sequência dos acontecimentos dos últimos meses — através da rejeição de todo o tipo de violência e, esperançosamente, através do início de negociações baseadas na boa-fé e com o objetivo do bem comum do país. Estou a pensar na Bolívia, que atravessa uma situação política, social e económica preocupante; bem como na Colômbia, onde confio que, com a ajuda de todos, se possa ultrapassar a multiplicidade de conflitos que há tanto tempo têm dilacerado o país. Por fim, penso na Nicarágua, onde a Santa Sé, que está sempre disponível para um diálogo respeitoso e construtivo, segue com preocupação as medidas tomadas contra pessoas e instituições da Igreja e espera que a liberdade religiosa e outros direitos fundamentais sejam devidamente garantidos a todos.
Com efeito, não há verdadeira paz se não for também garantida a liberdade religiosa, que implica o respeito pela consciência dos indivíduos e a possibilidade de manifestar publicamente a própria fé e a pertença a uma comunidade. Neste sentido, são muito preocupantes as crescentes manifestações de antissemitismo, que veementemente condeno e que afetam um número cada vez maior de comunidades hebraicas no mundo.
Não posso ficar calado perante as numerosas perseguições contra várias comunidades cristãs, muitas vezes perpetradas por grupos terroristas, especialmente em África e na Ásia, nem perante formas mais “delicadas” de limitação da liberdade religiosa que, por vezes, se verificam mesmo na Europa, onde se multiplicam normas legais e práticas administrativas que «que limitam ou anulam praticamente, com os factos, os direitos que as Constituições reconhecem formalmente a cada um daqueles que acreditam e aos grupos religiosos»4. A este propósito, gostaria de reiterar que a liberdade religiosa constitui «uma aquisição de civilização política e jurídica»5, porque quando é reconhecida, «a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos»6.
Que os cristãos possam e queiram contribuir ativamente para a construção das sociedades em que vivem. Mesmo quando não são a maioria na sociedade, eles são cidadãos de pleno direito, especialmente nas terras onde vivem desde tempos imemoriais. Refiro-me, em particular, à Síria, que, após anos de guerra e devastação, parece estar a percorrer uma via de estabilidade. Espero que a integridade territorial, a unidade do povo sírio e as necessárias reformas constitucionais não sejam comprometidas por ninguém, e que a Comunidade internacional ajude a Síria a ser uma terra de convivência pacífica, onde todos os sírios, incluindo a parte cristã, possam sentir-se plenamente cidadãos e participar no bem comum daquela querida nação.
Do mesmo modo, penso no amado Líbano, esperando que o país, com a ajuda decisiva da sua componente cristã, possa ter a estabilidade institucional necessária para enfrentar a grave situação económica e social, reconstruir o sul do país afetado pela guerra e implementar plenamente a Constituição e os Acordos de Taife. Que todos os libaneses trabalhem para que o rosto do País dos Cedros nunca mais seja desfigurado pela divisão, mas brilhe sempre pela “vida em conjunto” e o Líbano continue a ser um país-mensagem de coexistência e de paz.
Anunciar a libertação aos escravos
Dois mil anos de cristianismo contribuíram para eliminar a escravatura de todos os sistemas jurídicos. No entanto, continuam a existir múltiplas formas de escravatura, a começar pela que diz respeito ao trabalho; é pouco reconhecida mas muito praticada. Demasiadas pessoas vivem como escravas do seu trabalho, que de meio se transformou num fim da própria vida, e são frequentemente escravas de condições laborais desumanas, em termos de segurança, horários e salário. Há que envidar esforços para criar condições dignas e para que o trabalho, em si mesmo nobre e enobrecedor, não se torne um obstáculo à realização e ao crescimento da pessoa humana. Ao mesmo tempo, é necessário garantir a existência de verdadeiras possibilidades de emprego, sobretudo onde o desemprego generalizado favorece o trabalho não declarado e, consequentemente, a criminalidade.
Há ainda a terrível escravatura da toxicodependência, que afeta sobretudo os jovens. É inaceitável constatar quantas vidas, famílias e países são arruinados por este flagelo, que parece estar a alastrar-se cada vez mais, sobretudo devido ao aparecimento de drogas sintéticas, muitas vezes mortais e amplamente disponibilizadas pelo abominável fenómeno do narcotráfico.
Entre outras escravaturas do nosso tempo, uma das mais terríveis é a praticada pelos traficantes de seres humanos: gente sem escrúpulos que exploram a necessidade de milhares de pessoas em fuga de guerras, carestias, perseguições ou dos efeitos das alterações climáticas e que procuram um lugar seguro para viver. Uma diplomacia da esperança é uma diplomacia de liberdade, que exige o empenho conjunto da Comunidade internacional para eliminar este miserável comércio.
Ao mesmo tempo, temos de cuidar das vítimas deste tráfico, que são os próprios migrantes, forçados a percorrer a pé milhares de quilómetros na América Central e no deserto do Saara, ou a atravessar o Mar Mediterrâneo ou o Canal da Mancha em embarcações improvisadas e sobrelotadas, para depois serem rejeitados ou se encontrarem clandestinos numa terra estrangeira. Esquecemo-nos facilmente de que nos encontramos perante pessoas que precisam de ser acolhidas, protegidas, promovidas e integradas7.
Todavia, com grande deceção, registo que a migração continua envolta numa escura nuvem de desconfiança, em vez de ser vista como uma fonte de desenvolvimento. As pessoas que se deslocam são consideradas apenas como um problema a gerir. Não podem ser assemelhadas a objetos para colocar num determinado lugar, mas têm dignidade e recursos para oferecer aos outros; têm as suas próprias experiências, necessidades, medos, aspirações, sonhos, competências, talentos. Só nesta perspetiva é possível fazer progressos na abordagem de um fenómeno que exige uma intervenção conjunta de todos os países, nomeadamente através da criação de percursos regulares e seguros.
Continua, portanto, a ser crucial enfrentar as causas profundas da emigração, de tal modo que deixar a própria casa para procurar outra seja uma escolha e não uma “obrigação de sobrevivência”. Nesta perspetiva, considero crucial um compromisso conjunto no sentido de investir na cooperação para o desenvolvimento, a fim de ajudar a erradicar algumas das causas que levam as pessoas a emigrar.
Anunciar a liberdade aos prisioneiros
Por fim, a diplomacia da esperança é uma diplomacia de justiça, sem a qual não pode haver paz. O ano jubilar é um período propício à prática da justiça, ao perdão das dívidas e à comutação das penas dos prisioneiros. No entanto, não há dívida que permita a ninguém, nem ao Estado, exigir a vida de outrem. A este respeito, reitero o meu apelo para que a pena de morte seja eliminada em todas as nações8, uma vez que não encontra atualmente justificação entre os instrumentos adequados para reparar a justiça.
Por outro lado, não podemos esquecer que, num certo sentido, somos todos prisioneiros, porque somos todos devedores: devemos a Deus, aos outros e também à nossa amada Terra, da qual retiramos o alimento quotidiano. Como recordei na recente Mensagem do Dia Mundial da Paz, «cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita»9. A natureza parece estar a insurgir-se, sempre mais, contra a ação humana, através de manifestações extremas do seu poder. Exemplos disso são as inundações devastadoras na Europa Central e em Espanha, bem como os ciclones que atingiram Madagáscar na primavera e, pouco antes do Natal, o Departamento francês de Mayotte e Moçambique.
Não podemos continuar indiferentes a tudo isto! Não temos esse direito! Pelo contrário, temos o dever de envidar o máximo esforço para cuidar da nossa casa comum e daqueles que a habitam e habitarão.
Durante a cop 29, em Baku, foram tomadas decisões para garantir mais recursos financeiros para a ação climática. Espero que elas permitam a partilha de recursos em benefício dos muitos países vulneráveis à crise climática e sobrecarregados pelo peso de uma dívida económica opressiva. Nesta linha, apelo às nações mais ricas para que perdoem as dívidas dos países que nunca as poderiam pagar. Não se trata apenas de um ato de solidariedade ou de magnanimidade, mas sobretudo de um ato de justiça, marcada também por uma nova forma de iniquidade da qual estamos hoje cada vez mais conscientes: a “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul10.
Ainda em função da dívida ecológica, é importante encontrar modos eficazes de converter a dívida externa dos países pobres em políticas e programas eficientes, criativas e responsáveis de desenvolvimento humano integral. A Santa Sé está disposta a acompanhar este processo, consciente de que não há fronteiras nem barreiras, políticas ou sociais, atrás das quais nos possamos esconder11.
Prezados Embaixadores!
Na perspetiva cristã, o Jubileu é um tempo de graça. E como eu gostaria que este ano de 2025 fosse verdadeiramente um ano de graça, rico de verdade, perdão, liberdade, justiça e paz! «No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expetativa do bem»12 e cada um de nós é chamado a fazê-la florescer ao seu redor. A todos vós, estimados Embaixadores, às vossas famílias, aos governos e povos que representais, deixo este meu cordial voto: que a esperança floresça nos nossos corações e o nosso tempo encontre a paz que tanto anseia. Muito obrigado!
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1Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 27.
2Cf. Encontro com as Autoridades civis, com os Representantes das populações indígenas e com o Corpo Diplomático (Citadelle de Québec, 27 de julho de 2022).
3Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 262; cf. Paulo vi , Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 51.
4João Paulo ii , Mensagem para o xxi Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 1988), 2.
5Bento xvi , Mensagem para o xliv Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 2011), 5.
6Ibidem.
7Cf. Discurso aos participantes no Fórum Internacional sobre Migrações e Paz (21 de fevereiro de 2017).
8Cf. Mensagem para o lviii Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 2025), 11.
9Ibid., 4.
10Cf. Bula Spes non confundit (9 de maio de 2024), 16; Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 51.
11Cf. Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 52.
12Bula Spes non confundit (9 de maio de 2024), 1.