O Congresso internacional sobre o futuro da teologia, «Legado e imaginação», promovido pelo Dicastério para a cultura e a educação, terminou a 10 de dezembro de 2024 na Pontifícia Universidade Lateranense. Depois da audiência concedida pelo Papa na manhã do dia 9 aos cerca de 500 participantes, à tarde o cardeal prefeito do Dicastério introduziu os trabalhos, proferindo o discurso que em seguida publicamos na íntegra.
Há um sopro de novidade no ar que rejubila todos nós. Com um número tão elevado de teólogos e teólogas, refletindo o rosto multifacetado da Igreja no seu conjunto, este encontro tem algo de histórico. Contudo, mais do que a monumentalidade de um acontecimento que passa, queremos a fraternidade que permanece, concretizando aquilo a que, na sua Exortação apostólica programática Evangelii gaudium, o Papa Francisco chamou «o sonho missionário de alcançar todos» (n. 31). Queremos escutar todas as vozes: todas são importantes para o desenho do horizonte da esperança, neste tempo histórico cheio de desafios em tantos sentidos. Não queremos apenas ser muitos, desejamos sobretudo qualificar esta experiência de caminho comum e escuta sinodal como profecia compartilhada.
Também por isso, a Comissão científica do Congresso é representativa das principais macroáreas geográficas, culturais e teológicas. A este propósito, quero agradecer atenciosamente aos membros da Comissão científica internacional que, com o secretário do Dicastério, monsenhor Giovanni Cesare Pagazzi, trabalharam durante quase um ano para preparar este momento.
Agradeço de coração também a todos os oradores que nos honram com a sua presença e experiência e aos observadores convidados que contribuirão para a messe madura desta conferência. Obrigado também à comunidade de trabalho do Dicastério para a cultura e a educação, pela energia dedicada a esta conferência. Dirijo um agradecimento especial às doutorandas e doutorandos que desempenharão a tarefa de facilitadores nas mesas de estudo. Eles — e a sua geração — serão, talvez, os herdeiros imediatos desta experiência sinodal, e ilumina-nos o coração imaginar o futuro que acenderão.
Depois agradecemos, e penso que realmente o fazemos todos juntos, ao Santo Padre, que nos recebeu e nos dirigiu palavras de encorajamento. A coragem não é pouca coisa. No seu Tratado de harmonia, um dos livros que marcaram o século xx , o compositor Arnold Schönberg afirmava que «só quem tem coragem é um artista». Podemos dizer o mesmo das teólogas e dos teólogos. Há uma coragem inerente à prática da teologia e à convicção de que esta forma de conhecimento pode ser um recurso para a Igreja e o mundo.
Nestes dias, somos chamados a imaginar como podemos tornar-nos herdeiros da tradição vital que nos alimenta e como podemos abraçá-la com convicção para imaginar apaixonadamente novas possibilidades para a presença da teologia no mundo contemporâneo. Fá-lo-emos — como indica o programa do congresso — através de um tríptico: “onde”, “como” e “porquê” da teologia.
Seguindo esta arquitetura conceitual, partilharei convosco algumas breves reflexões introdutórias. Em primeiro lugar, procurarei destacar o onde e o porquê que nos trazem aqui, a Roma, no âmbito de um diálogo entre atores teológicos do mundo inteiro, promovido pelo Dicastério. E, em segundo lugar, apresentarei o como inscrito no binómio memória e imaginação, que escolhemos como princípio orientador do caminho que vamos percorrer juntos.
I. O onde e o porquê
Há exatamente 59 anos, a 8 de dezembro de 1965, encerrava-se o Concílio Vaticano ii . No próximo ano, celebraremos o 60º aniversário desta importante data para a Igreja contemporânea.
Uma das mudanças mais significativas que consubstanciam a atualização teológico-pastoral, litúrgica e cultural posta em prática pelo Concílio Vaticano ii é o abandono de uma ideia de Igreja fechada, subtraída à interrogação própria da compreensão e da incompletude própria do credo. Este modelo — como sabemos — foi-se consolidando progressivamente, como contraponto às forças sistémicas da modernidade que pretendiam desculturar a fé, reduzindo-a à esfera do não-racional, da existência particular ou da irrelevância social.
Neste contexto pré-conciliar, decididamente defensivo, o anúncio evangelizador era pensado e apresentado como mandamento, e o credo era determinado como norma moral incondicional. A imagem pública que, infelizmente, se tornou predominante era a de uma Igreja em conflito com o mundo. E, assim, a Verdade de que fala a Igreja sobressai como objeto visto de fora como algo cada vez mais enigmático, incompatível com os paradigmas da racionalidade ou com as formas da ciência. O homem moderno não se sente suficientemente representado no discurso eclesial, reclamando uma mediação hermenêutica mais dilatada entre a Verdade da fé e a inteligência da experiência humana. Sabemos qual foi o preço deste fechamento defensivo e beligerante em termos de perda de fecundidade cultural da presença cristã na sociedade: a linguagem do decreto funciona nos tribunais, mas não nas universidades. A verdade é acessível não como coerção, mas como adesão de liberdade:
«A verdade não se impõe de outro modo, a não ser pela sua própria força, que penetra no espírito de modo suave e ao mesmo tempo forte» ( dh , 1), escrevem os Padres conciliares no parágrafo inicial da Dignitatis humanae.
É inspirador reconhecer que a Igreja que sai do Concílio ensina, não impõe. Testemunha e partilha, não nega nem proíbe por automatismo. Liberta, não prende, confiando na «força da Palavra de Deus [...] seguindo o exemplo de mansidão e humildade de Cristo» ( dh , 11).
Sabemos que, às vezes, esta mansidão e humildade são lidas como forma de debilidade, rendição e cedência. Mas aprendamos a não ter medo quando nos expomos à liberdade do Espírito, conscientes de que Ele fecundará o coração e a mente dos homens com a verdade, enchendo-os da sua graça.
O serviço do Magistério e da Teologia na mediação da Verdade da fé não é por isso diminuído. É simplesmente atualizado, exercendo sobretudo um serviço de comunhão e unidade. Unidade e comunhão entre os fiéis, entre as suas experiências interpretativas. Unidade e comunhão com a Palavra na sua transmissão das Escrituras e dos Sacramentos e na continuidade histórica da Tradição. O Papa Francisco recordou a afirmação de Newman: «Aqui na terra viver é mudar, e a perfeição é o resultado de muitas transformações», concluindo com as seguintes palavras: trata-se de «um convite a descobrir o movimento do coração que, paradoxalmente, tem necessidade de partir para poder permanecer, de mudar para poder ser fiel».
É por isso que vos convido a reinterpretar também o onde e o porquê do nosso encontro: Roma não é o centro ao qual deveis assimilar-vos, perdendo a especificidade da vossa particularidade. Não é o ápice ao qual deveis sacrificar a vossa liberdade de investigação, mas é a memória viva do vosso ser Igreja: é o convite apaixonado a pensar em vós mesmos eclesial e sinodalmente, como comunidade católica, cujo carisma de unidade é carisma de reconciliação e convergência para toda a família humana.
O nosso serviço a vós consiste em sermos testemunhas e representantes da eclesialidade em que a liberdade da vossa busca se torna sacramento de comunhão, em que o amor pela verdade que tem o seu santuário na autonomia da consciência pronuncia a universalidade desta adesão e a sua força unificadora para todos os homens.
Vivemos tempos terríveis: a guerra e a pobreza flagelam a terra, os conflitos sociais e políticos abrem fendas cada vez mais profundas na sociedade, a violência envenena as relações tanto a nível particular como público. A nossa missão de cristãos, neste momento da história, é mais do que nunca fazer da nossa eclesialidade um sacramento de paz, reconciliação e convergência. Não procuramos a unanimidade. Não esperamos que neutralizeis o dissenso, as facetas do poliedro das diferenças. O debate, o confronto, a dialética são o sal do conhecimento, o seu motor. Uma teologia unanimista é uma teologia paralisada. Incapaz de se tornar generativa. Mas pedimos-vos que corrais juntos o risco de obedecer ao Espírito, que é fonte de comunhão, que ensina a tecer a harmonia, recompondo as diferenças em pluralismo convergente, não em mútua alienação.
A diferença entre o filósofo e o teólogo não consiste apenas na constatação de que este último explora racionalmente uma verdade que já encontrou na fé, mas de que a reconhece como corpo sacramental de fraternidade com a comunidade eclesial, mediadora da comunhão fraterna com todos os homens. O teólogo sente-se livre, mas nunca sozinho, nunca autossuficiente: sempre necessitado e doador de uma comunhão na verdade que não é apenas ideal, mas historicamente real, eclesialmente sacramental.
Portanto, chamar-vos a Roma é oferecer-vos um lugar carnal e simbólico de memória viva desta dimensão eclesial da vossa investigação, da vossa mediação hermenêutica. Mostremos ao mundo que a história não é Babel, o reino da divisão, do caos, da opressão. Demos ao mundo o sinal da graça do Pentecostes, da possibilidade de compreensão da diferença, da paz que nasce quando não procuramos vencer, ter vantagens, mas estamos dispostos à escuta e à hospitalidade humana, espiritual e até intelectual.
Estais — na verdade, estamos — aqui para construir juntos uma visão comum, na qual caminhar sinodalmente na paz e na verdade do Senhor. Isto é sinodalidade: nem unanimismo nem majoritarismo, mas fraternidade consciente e efetiva, que produz comunidade na pluralidade de vozes, contextos e carismas.
Confiamos-vos a tarefa de construir propostas de soluções institucionais concretas, praxes científicas e pedagógicas, experiências espirituais, orientações reflexivas, leituras teológicas e teologais capazes de iluminar a humanidade do nosso tempo. Quanto a nós, oferecemos o nosso compromisso a proteger e animar no vosso trabalho aquela comunhão e unidade eclesial que, como cristãos, somos todos chamados a encarnar, que como Pastores somos chamados a guardar.
Por isso, o nosso encontro inspira-se no estilo sinodal preconizado pelo Santo Padre Francisco para toda a Igreja e, por conseguinte, também para a teologia. Também por isso, o documento final da xvi Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos — Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão — considera necessárias a leitura teológica das experiências concretas e uma formação teológica à altura desta tarefa (cf. n. 143). A metodologia deste Congresso pretende oferecer um exercício de sinodalidade teológica. Talvez pareça insólita para alguns, mas facilita a construção de um pensamento múltiplo e comum. Certamente reservará várias surpresas.
A nossa intenção é que este Congresso seja o primeiro passo de um caminho comum. A Constituição apostólica Praedicate evangelium sobre a Cúria romana encoraja e apoia este nosso desejo (cf. art. 161). Da mesma forma, a recente Assembleia Plenária do Dicastério encorajou-nos a torná-lo operacional. Estamos aqui para nos ouvirmos uns aos outros sobre o modo como herdar o legado teológico das gerações eclesiais de ontem, a fim de que se torne imaginação e impulso criativo para as de hoje e de amanhã, honrando o que o Santo Padre pediu no proémio da Constituição apostólica Veritatis gaudium. Com efeito, ele exorta as instituições académicas teológicas a continuar a investigação e a oferecer lugares e percursos de formação qualificada para sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos. Mas convida também as mesmas instituições, e sobretudo a teologia, a tornar-se «uma espécie de laboratório cultural providencial, onde a Igreja exerce a interpretação performativa da realidade que brota do evento de Jesus Cristo» (Veritatis gaudium, Proémio, n. 3). Este «laboratório cultural» lançaria luz sobre a contribuição específica da teologia para a criação de novos paradigmas de racionalidade, evitando a clandestinidade cultural e a marginalização universitária de que sofre a própria teologia. A vossa resposta coerente ao nosso convite já nos enche de esperança. Agradeço-vos desde já o que puderdes oferecer para promover e apoiar o trabalho deste Dicastério. Ainda antes de ter iniciado, o Congresso já deu frutos consideráveis. Com efeito, recebemos mais de 350 contribuições em resposta ao questionário que vos foi enviado no verão passado. Juntamente com o que surgirá nestes dias, serão objeto de estudo, para que as decisões que o futuro nos pedir sejam mais fundamentadas e compartilhadas.
II. O como
O como do nosso encontro articula-se com o binómio memória e imaginação, que pudemos identificar como linhas orientadoras de uma investigação teológica que saiba conjugar a capacidade de futuro com a fidelidade ao já da aliança de Deus com o seu povo, que no acontecimento da encarnação e ressurreição de Cristo se realiza como dimensão de salvação e redenção escatologicamente ativa na história, no nosso presente.
Somente unindo estas três dimensões da nossa experiência da história da salvação, só unindo o passado, o presente e o futuro, a nossa fé pode inscrever-se fecundamente no caminho do povo de Deus, traduzindo-se numa compreensão do que é necessário para a Igreja de hoje a fim de ser sinal e instrumento de salvação para toda a humanidade.
Um dos grandes problemas do presente é precisamente a desativação progressiva dos mecanismos culturais, sociais e antropológicos que nos permitem pensar e viver a diacronia como história, construir interpretações narrativas e teleológicas que perspetivam o presente individual e coletivo, permitindo-nos articular a nossa vida e o curso das nossas sociedades como um antes, um agora e um depois.
O teólogo, como cada cristão, é simultaneamente um historiógrafo, uma testemunha participante do presente e um profeta: não é quem prevê o futuro, mas aquele que o vê como algo em que o presente se pode tornar se o confiarmos ao poder da graça divina, se acolhermos o dom da salvação do Senhor. A imaginação que o cristão é chamado a exercer como responsabilidade ativa, que o teólogo é chamado a converter em inteligência interpretativa, não é fantasia: não é o jogo arbitrário do desejo, desligado da realidade e do possível, mas sim a escuta diligente da força transformadora da Verdade.
A imaginação do cristão é um olhar crítico que reconhece que o mundo não é como deveria ser, que está marcado pelo mal, o pecado, o sofrimento, e tem necessidade de redenção, mas abre-se ao mesmo tempo como olhar regenerador que reconhece os sinais do advento desta redenção, reconhece os caminhos a abrir para que ela se possa tornar presente no coração e na mente dos homens, nas vicissitudes da história. Não é um olhar puramente contemplativo, mas performativo que reconhece profeticamente o que podemos fazer com este mundo, se o confiarmos à promessa de salvação de Deus.
Irmãos e irmãs, não subestimemos a força deste olhar profético. Não subestimemos a força transformadora de uma imaginação em que a memória fiel da promessa se torna a esperança de futuro para toda a humanidade.
Neste espírito, lancemo-nos ao trabalho, demo-nos as mãos. O poeta Charles Péguy escreveu, com razão, que quando nos recusamos de sujar as mãos no cuidado da vida, depressa acabamos por ficar sem mãos. É um dado: demasiadas vezes vivemos sem mãos, a teologia vive sem mãos... Na verdade, só as mãos que se dão se descobrem como mãos, como doadoras do dom, protagonistas da história. As mãos que se dão ouvem finalmente o próprio idioma; compreendem que se realizam não como afasia, mas como linguagem de comunhão. A Igreja precisa das vossas mentes, dos vossos corações e das vossas mãos para se tornar profecia compartilhada.
José Tolentino
de Mendonça